«Ó Santa Mãe do Redentor, porta do Céu sempre aberta, estrela do mar,
socorrei o vosso povo, que cai e anela por erguer-se. Vós que gerastes,
com grande admiração de todas as criaturas, o vosso santo Genitor»!
CARTA ENCÍCLICA
REDEMPTORIS MATER
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
SOBRE A BEM-AVENTURADA
VIRGEM MARIA
NA VIDA DA IGREJA
QUE ESTÁ A CAMINHO
Veneráveis Irmãos,
caríssimos Filhos e Filhas:
saúde e Bênção Apostólica!
INTRODUÇÃO
1. A MÃE DO REDENTOR tem um lugar bem preciso no plano da salvação,
porque, «ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho,
nascido duma mulher, nascido sob a Lei, a fim de resgatar os que estavam
sujeitos à Lei e para que nós recebêssemos a adopção de filhos. E
porque vós sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do
seu Filho, que clama: «Abbá! Pai!»» (Gál 4, 4-6).
Com estas palavras do Apóstolo São Paulo, que são referidas pelo
Concílio Vaticano II no início da sua exposição sobre a Bem-aventurada
Virgem Maria,[1]
desejo também eu começar a minha reflexão sobre o significado que Maria
tem no mistério de Cristo e sobre a sua presença activa e exemplar na
vida da Igreja. Trata-se, de facto, de palavras que celebram
conjuntamente o amor do Pai, a missão do Filho, o dom do Espírito Santo,
a mulher da qual nasceu o Redentor e a nossa filiação divina, no
mistério da «plenitude dos tempos». [2]
Esta «plenitude» indica o momento, fixado desde toda a eternidade, em
que o Pai enviou o seu Filho, «para que todo o que n'Ele crer não
pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). Ela designa o momento abençoado em que «o Verbo, que estava junto de Deus, ... se fez carne e habitou entre nós» (Jo
1, 1. 14), fazendo-se nosso irmão. Esta «plenitude» marca o momento em
que o Espírito Santo que já tinha infundido a plenitude de graça em
Maria de Nazaré, plasmou no seu seio virginal a natureza humana de
Cristo. A mesma «plenitude» denota aquele momento, em que, pelo ingresso
do eterno no tempo, do divino no humano, o próprio tempo foi redimido
e, tendo sido preenchido pelo mistério de Cristo, se torna
definitivamente «tempo de salvação». Ela assinala, ainda, o início
arcano da caminhada da Igreja. Na Liturgia, de facto, a Igreja saúda
Maria de Nazaré como seu início, [3]
por isso mesmo que já vê projectar-se, no evento da Conceição
imaculada, como que antecipada no seu membro mais nobre, a graça
salvadora da Páscoa; e, sobretudo, porque no acontecimento da Incarnação
se encontram indissoluvelmente ligados Cristo e Maria Santíssima:
Aquele que é o seu Senhor e a sua Cabeça e Aquela que, ao pronunciar o
primeiro «fiat» (faça-se) da Nova Aliança, prefigura a condição da mesma Igreja de esposa e de mãe.
2. Confortada pela presença de Cristo (cf. Mt 28, 20), a
Igreja caminha no tempo, no sentido da consumação dos séculos e procede
para o encontro com o Senhor que vem. Mas nesta caminhada ― desejo realçá-lo desde já ― a Igreja procede seguindo as pegadas do itinerário percorrido pela Virgem Maria, a qual «avançou na peregrinação da fé, mantendo fielmente a união com o seu Filho até à Cruz».[4]
Refiro estas palavras tão densas, evocando assim a Constituição Lumen gentium,
o documento que, no último capítulo, apresenta uma síntese vigorosa da
fé e da doutrina da Igreja sobre o tema da Mãe de Cristo, venerada como
Mãe amantíssima e como seu modelo na fé, na esperança e na caridade.
Poucos anos depois do Concílio, o meu grande Predecessor Paulo VI
houve por bem voltar a falar da Virgem Santíssima, expondo primeiramente
na Carta Encíclica Christi Matri e, em seguida, nas Exortações Apostólicas Signum magnum e Marialis cultus, [5]
os fundamentos e os critérios daquela veneração singular que a Mãe de
Cristo recebe na Igreja, assim como as formas de devoção mariana ―
litúrgicas, populares e privadas ― em correspondência com o espírito da
fé.
3. A circunstância que agora me impele também a mim a retomar este assunto é a perspectiva do Ano Dois Mil,
que já está próximo, no qual o Jubileu bimilenário do nascimento de
Jesus Cristo, nos leva a volver o olhar simultaneamente para a sua Mãe.
Nestes anos mais recentes, foram aparecendo diversos alvitres que
apontavam a oportunidade de fazer anteceder a comemoração bimilenária de
um outro Jubileu análogo, dedicado à celebração do nascimento de Maria
Santíssima.
Na realidade, se não é possível estabelecer um momento cronológico preciso para aí fixar o nascimento de Maria, tem sido constante da parte da Igreja a consciência de que Maria apareceu antes de Cristo no horizonte da história da salvação.[6]
É um facto que, ao aproximar-se definitivamente a «plenitude dos
tempos», isto é, o advento salvífico do Emanuel, Aquela que desde a
eternidade estava destinada a ser sua Mãe já existia sobre a terra. Esta
sua «precedência», em relação à vinda de Cristo, tem anualmente os seus
reflexos na liturgia do Advento. Por conseguinte, se os anos que
nos vão aproximando do final do Segundo Milénio depois de Cristo e do
início do Terceiro forem cotejados com aquela antiga expectativa
histórica do Salvador, torna-se perfeitamente compreensível que neste
período desejemos voltar-nos de modo especial para Aquela que, na
«noite» da expectativa do Advento, começou a resplandecer como uma
verdadeira «estrela da manhã» (Stella matutina). Com efeito,
assim como esta estrela, conjuntamente à «aurora», precede o nascer do
sol, assim também Maria, desde a sua Conceição imaculada, precedeu a
vinda do Salvador, o nascer do «sol da justiça» na história do género
humano. [7]
A sua presença no meio do povo de Israel ― tão discreta que passava
quase despercebida aos olhos dos contemporâneos ― brilhava bem clara
diante do Eterno, que tinha associado esta ignorada «Filha de Sião» (cf.
Sof 3, 14; Zac 2, 14) ao plano salvífico que compreendia
toda a história da humanidade. Com razão, pois, no final deste Milénio,
nós cristãos, que sabemos ser o plano providencial da Santíssima
Trindade a realidade central da revelação e da fé, sentimos a
necessidade de pôr em relevo a presença singular da Mãe de Cristo na
história, especialmente no decorrer deste último período de tempo que
precede o Ano Dois Mil.
4. Para isso nos prepara já o Concílio Vaticano II, ao apresentar no seu magistério a Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja.
Com efeito, se «o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no
mistério do Verbo Incarnado» ― como proclama o mesmo Concílio [8]
― então é necessário aplicar este princípio, de modo muito particular,
àquela excepcional «filha da estirpe humana», àquela «mulher»
extraordinária que se tornou Mãe de Cristo. Só no mistério de Cristo «se esclarece» plenamente o seu mistério.
Foi assim, de resto, que a Igreja, desde o princípio, procurou fazer a
sua leitura: o mistério da Incarnação permitiu-lhe entender e esclarecer
cada vez melhor o mistério da Mãe do Verbo Incarnado. Neste
aprofundamento teve uma importância decisiva o Concílio de Éfeso (a.
431), durante o qual, com grande alegria dos cristãos, a verdade sobre a
maternidade divina de Maria foi confirmada solenemente como verdade de
fé da Igreja. Maria é a Mãe de Deus ( = Theotókos), uma
vez que, por obra do Espírito Santo, concebeu no seu seio virginal e deu
ao mundo Jesus Cristo, o Filho de Deus consubstancial ao Pai. [9] «O Filho de Deus ... ao nascer da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós ...»,[10]
fez-se homem. Deste modo, pois, mediante o mistério de Cristo,
resplandece plenamente no horizonte da fé da Igreja o mistério da sua
Mãe. O dogma da maternidade divina de Maria, por sua vez, foi para o
Concílio de Éfeso e é para a Igreja como que uma chancela no dogma da
Incarnação, em que o Verbo assume realmente, sem a anular, a natureza
humana na unidade da sua Pessoa.
5. O Concílio Vaticano II, apresentando Maria no mistério de Cristo,
encontra desse modo o caminho para aprofundar também o conhecimento do
mistério da Igreja. Maria, de facto, como Mãe de Cristo, está unida de modo especial com a Igreja, «que o Senhor constituiu como seu corpo». [11]
O texto conciliar põe bem próximas uma da outra, significativamente,
esta verdade sobre a Igreja como corpo de Cristo (segundo o ensino das Cartas
de São Paulo) e a verdade de que o Filho de Deus «por obra do Espírito
Santo nasceu da Virgem Maria». A realidade da Incarnação encontra como
que um prolongamento no mistério da Igreja ― corpo de Cristo. E não se pode pensar na mesma realidade da Incarnação sem fazer referência a Maria ― Mãe do Verbo Incarnado.
Nas reflexões que passo a apresentar, porém, quero referir-me
principalmente àquela «peregrinação da fé», na qual «a Bem-aventurada
Virgem Maria avançou», conservando fielmente a união com Cristo. [12] Deste modo, aquele dúplice vínculo, que une a Mãe de Deus com Cristo e com a Igreja,
reveste-se de um significado histórico. E não se trata aqui
simplesmente da história da Virgem Maria, do seu itinerário pessoal de
fé e da «melhor parte» que ela tem no mistério da salvação; trata-se
também da história de todo o Povo de Deus, de todos aqueles que tomam parte na mesma peregrinação da fé.
É isto o que exprime o Concílio, ao declarar, numa outra passagem,
que a Virgem Maria «precedeu», tornando-se «a figura da Igreja, na ordem
da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo».[13] Este seu «preceder», como figura ou modelo,
refere-se ao próprio mistério íntimo da Igreja, a qual cumpre a própria
missão salvífica unindo em si ― à semelhança de Maria ― as qualidades de mãe e de virgem.
É virgem que «guarda fidelidade total e pura ao seu esposo» e
«torna-se, também ela própria, mãe ... pois gera para vida nova e
imortal os filhos concebidos por acção do Espírito Santo e nascidos de
Deus».[14]
6. Tudo isto se realiza num grande processo histórico e, por assim dizer, «numa caminhada». «A peregrinação da fé» indica a história interior,
que é como quem diz a história das almas. Mas esta é também a história
dos homens, sujeitos nesta terra à condição transitória e situados nas
dimensões históricas. Nas reflexões que seguem quereria, juntamente
convosco, concentrar-me primeiro que tudo na sua fase presente, que
aliás de per si não pertence ainda à história; e, contudo,
incessantemente já a vai plasmando, também no sentido de história da
salvação. Aqui abre-se um espaço amplo, no interior do qual a Bem-aventurada Virgem Maria continua a «preceder» o Povo de Deus.
A sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência
constante para a Igreja, para as pessoas singulares e para as
comunidades, para os povos e para as nações e, em certo sentido, para
toda a humanidade. É verdadeiramente difícil abarcar e medir o seu
alcance.
O Concílio sublinha que a Mãe de Deus já é a realização escatológica da Igreja: «na Santíssima Virgem ela já atingiu aquela perfeição sem mancha nem ruga que lhe é própria (cf. Ef
5, 27)» ― e, simultaneamente, que «os fiéis ainda têm de envidar
esforços para debelar o pecado e crescer na santidade; e, por isso, eles levantam os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a comunidade dos eleitos» [15]
A peregrinação da fé é algo que já não pertence à Genetriz do Filho de
Deus: glorificada nos céus ao lado do próprio Filho, a sua união com o
mesmo Deus já transpôs o limiar entre a fé e a visão «face-a-face» (1 Cor 13, 12). Ao mesmo tempo, porém, nesta realização escatológica, Maria não cessa de ser a «estrela do mar» (Maris Stella)[16]
para todos aqueles que ainda percorrem o caminho da fé. Se levantam os
olhos para Ela nos diversos lugares onde se desenrola a sua existência
terrena, fazem-no porque Ela «deu à luz o Filho, que Deus estabeleceu
como primogénito entre muitos irmãos» (Rom 8, 29) [17] e também porque «Ela coopera com amor de mãe» para «a regeneração e educação» destes irmãos e irmãs.[18]
PRIMEIRA PARTE
MARIA NO MISTÉRIO DE CRISTO
1. Cheia de graça
7. «Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual no
alto dos céus, nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais em
Cristo» (Ef 1, 3). Estas palavras da Carta aos Efésios revelam
o eterno desígnio de Deus Pai, o seu plano de salvação do homem em
Cristo. É um plano universal, que concerne todos os homens criados à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gén 1, 26). Todos eles, assim
como «no princípio» estão compreendidos na obra criadora de Deus, assim
também estão eternamente compreendidos no plano divino da salvação, que
se deve revelar cabalmente na «plenitude dos tempos», com a vinda de
Cristo. Com efeito, «n'Ele», aquele Deus, que é «Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo» ― são as palavras que vêm a seguir na mesma Carta ― «nos elegeu antes da criação do mundo,
para sermos santos e imaculados aos seus olhos. Por puro amor Ele nos
predestinou a sermos adoptados por Ele como filhos, por intermédio de
Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor da
magnificência da sua graça, pela qual nos tornou agradáveis em seu amado Filho. N'Ele, mediante o seu sangue, temos a redenção, a remissão dos pecados segundo as riquezas da sua graça» (Ef 1, 4-7).
O plano divino da salvação, que nos foi revelado plenamente com a vinda de Cristo, é eterno. Ele é também ― segundo o ensino contido na mesma Carta e noutras Cartas paulinas (cf. Col 1, 12-14; Rom 3, 24; Gál 3, 13; 2 Cor 5, 18-29) ― algo que está eternamente ligado a Cristo.
Ele compreende em si todos os homens; mas reserva um lugar singular à
«mulher» que foi a Mãe d'Aquele ao qual o Pai confiou a obra da
salvação. [19]
Como explana o Concílio Vaticano II, «Maria encontra-se já
profeticamente delineada na promessa da vitória sobre a serpente, feita
aos primeiros pais caídos no pecado», segundo o Livro do Génesis
(cf. 3, 15). «Ela é, igualmente, a Virgem que conceberá e dará à luz um
Filho, cujo nome será Emanuel» segundo as palavras de Isaías (cf. 7,
14). [20]Deste
modo, o Antigo Testamento prepara aquela «plenitude dos tempos», quando
Deus haveria de enviar «o seu Filho, nascido duma mulher ..., para que
nós recebêssemos a adopção como filhos». A vinda ao mundo do Filho de
Deus e o acontecimento narrado nos primeiros capítulos dos Evangelhos
segundo São Lucas e segundo São Mateus.
8. Maria é introduzida no mistério de Cristo definitivamente mediante aquele acontecimento que foi a Anunciação
do Anjo. Esta deu-se em Nazaré, em circunstâncias bem precisas da
história de Israel, o povo que foi o primeiro destinatário das promessas
de Deus. O mensageiro divino diz à Virgem: «Salve, ó cheia de graça, o
Senhor é contigo» (Lc 1, 28). Maria «perturbou-se e interrogava-se a si própria sobre o que significaria aquela saudação» (Lc 1, 29): que sentido teriam todas aquelas palavras extraordinárias, em particular, a expressão «cheia de graça» (kecharitoméne). [21]
Se quisermos meditar juntamente com Maria em tais palavras e,
especialmente, na expressão «cheia de graça», podemos encontrar uma
significativa correspondência precisamente na passagem acima citada da Carta aos Efésios. E se, depois do anúncio do mensageiro celeste, a Virgem de Nazaré é chamada também a «bendita entre as mulheres» (cf. Lc 1, 42), isso explica-se por causa daquela bênção com que «Deus Pai» nos cumulou «no alto dos céus, em Cristo». É uma bênção espiritual,
que se refere a todos os homens e traz em si mesma a plenitude e a
universalidade (»toda a sorte de bênçãos»), tal como brota do amor que,
no Espírito Santo, une ao Pai o Filho consubstancial. Ao mesmo tempo,
trata-se de uma bênção derramada por obra de Jesus Cristo na história
humana até ao fim: sobre todos os homens. Mas esta bênção refere-se a Maria em medida especial e excepcional: ela, de facto, foi saudada por Isabel como «a bendita entre as mulheres».
O motivo desta dupla saudação, portanto, está no facto de se ter
manifestado na alma desta «filha de Sião», em certo sentido, toda a
«magnificência da graça», daquela graça com que «o Pai ... nos tornou
agradáveis em seu amado Filho». O mensageiro, efectivamente, saúda Maria
como «cheia de graça»; e chama-lhe assim, como se este fosse o seu
verdadeiro nome. Não chama a sua interlocutora com o nome que lhe é
próprio segundo o registo terreno: «Miryam» ( = Maria); mas sim com este nome novo: «cheia de graça». E o que significa este nome? Por que é que o Arcanjo chama desse modo à Virgem de Nazaré?
Na linguagem da Bíblia «graça» significa um dom especial, que,
segundo o Novo Testamento, tem a sua fonte na vida trinitária do próprio
Deus, de Deus que é amor (cf. 1 Jo 4, 8). É fruto deste amor a «eleição» ― aquela eleição de que fala a Carta aos Efésios. Da parte de Deus esta «escolha» é a eterna vontade de salvar o homem, mediante a participação na sua própria vida divina (cf. 2 Pdr 1,
4) em Cristo: é a salvação pela participação na vida sobrenatural. O
efeito deste dom eterno, desta graça de eleição do homem por parte de
Deus, é como que um gérmen de santidade, ou como que uma nascente
a jorrar na alma do homem, qual dom do próprio Deus que, mediante a
graça, vivifica e santifica os eleitos. Desta forma se verifica, isto é,
se torna realidade aquela «bênção» do homem «com toda a sorte de
bênçãos espirituais», aquele «ser seus filhos adoptivos ... em Cristo»,
ou seja, n'Aquele que é desde toda a eternidade o «Filho muito amado» do
Pai.
Quando lemos que o mensageiro diz a Maria «cheia de graça», o
contexto evangélico, no qual confluem revelações e promessas antigas,
permite-nos entender que aqui se trata de uma «bênção» singular entre
todas as «bênçãos espirituais em Cristo». No mistério de Cristo, Maria
está presente já «antes da criação do mundo», como aquela a quem o Pai «escolheu» para Mãe
do seu Filho na Incarnação ― e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também
o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade. Maria está
unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste «Filho muito amado» desde toda a eternidade,
neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda «a
magnificência da graça». Ao mesmo tempo, porém, ela é e permanece
perfeitamente aberta para este «dom do Alto» (cf. Tg 1, 17) Como
ensina o Concílio, Maria «é a primeira entre os humildes e os pobres do
Senhor, que confiadamente esperam e recebem d'Ele a salvação». [22]
9. A saudação e o nome «cheia de graça» dizem-nos tudo isto; mas, no contexto do anúncio do Anjo, referem-se em primeiro lugar à eleição de Maria como Mãe do Filho de Deus.
Todavia, a plenitude de graça indica ao mesmo tempo toda a profusão de
dons sobrenaturais com que Maria é beneficiada em relação com o facto de
ter sido escolhida e destinada para ser Mãe de Cristo. Se esta eleição é
fundamental para a realização dos desígnios salvíficos de Deus, a
respeito da humanidade, e se a escolha eterna em Cristo e a destinação
para a dignidade de filhos adoptivos se referem a todos os homens, então
a eleição de Maria é absolutamente excepcional e única. Daqui deriva
também a singularidade e unicidade do seu lugar no mistério de Cristo.
O mensageiro divino diz-lhe: «Não temas, Maria, pois achaste graça
diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, ao qual porás
o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo» (Lc
1, 30-32). E quando a Virgem, perturbada por esta saudação
extraordinária, pergunta: «Como se realizará isso, pois eu não conheço
homem?», recebe do Anjo a confirmação e a explicação das palavras
anteriores. Gabriel diz-lhe: «Virá sobre ti o Espírito Santo e a potência do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).
A Anunciação, portanto, é a revelação do mistério da Incarnação
exactamente no início da sua realização na terra. A doação salvífica que
Deus faz de si mesmo e da sua vida, de alguma maneira a toda a criação
e, directamente, ao homem, atinge no mistério da Incarnação um dos seus pontos culminantes.
Isso constitui, de facto, um vértice de todas as doações de graça na
história do homem e do cosmos. Maria é a «cheia de graça», porque a
Incarnação do Verbo, a união hipostática do Filho de Deus com a natureza
humana, se realiza e se consuma precisamente nela. Como afirma o
Concílio, Maria é «Mãe do Filho de Deus e, por isso, filha predilecta do
Pai e templo do Espírito Santo; e, por este insigne dom de graça, leva
vantagem a todas as demais criaturas do céu e da terra». [23]
10. A Carta aos Efésios, falando da «magnificência da graça»
pela qual «Deus Pai ... nos tornou agradáveis em seu amado Filho»,
acrescenta: «N'Ele temos a redenção pelo seu sangue» (Ef 1, 7).
Segundo a doutrina formulada em documentos solenes da Igreja, esta
«magnificência da graça» manifestou-se na Mãe de Deus pelo facto de ela
ter sido «redimida de um modo mais sublime». [24]
Em virtude da riqueza da graça do amado Filho e por motivo dos
merecimentos redentores d'Aquele que haveria de tornar-se seu Filho, Maria foi preservada da herança do pecado original. [25]
Deste modo, logo desde o primeiro instante da sua concepção, ou seja da
sua existência, ela pertence a Cristo, participa da graça salvífica e
santificante e daquele amor que tem o seu início no «amado Filho», no
Filho do eterno Pai que, mediante a Incarnação, se tornou o seu próprio
Filho. Sendo assim, por obra do Espírito Santo, na ordem da graça, ou
seja, da participação da natureza di vina, Maria recebe a vida d'Aquele, ao qual ela própria, na ordem da geração terrena, deu a vida como mãe. A Liturgia não hesita em chamá-la «genetriz do seu Genitor» [26] e em saudá-la com as palavras que Dante Alighieri põe na boca de São Bernardo: «filha do teu Filho» [27].
E, uma vez que Maria recebe esta «vida nova» numa plenitude
correspondente ao amor do Filho para com a Mãe, e por conseguinte à
dignidade da maternidade divina, o Anjo na Anunciação chama-lhe «cheia
de graça».
11. No desígnio salvífico da Santíssima Trindade o mistério da Incarnação constitui o cumprimento superabundante da promessa feita por Deus aos homens, depois do pecado original, depois daquele primeiro pecado cujos efeitos fazem sentir o seu peso sobre toda a história do homem na terra (cf. Gén
3, 15). E eis que vem ao mundo um Filho, a «descendência da mulher»,
que vencerá o mal do pecado nas suas próprias raízes: «esmagará a
cabeça» da serpente. Como resulta das palavras do Proto-Evangelho, a
vitória do Filho da mulher não se verificará sem uma árdua luta, que
deve atravessar toda a história humana. «A inimizade», anunciada no
princípio, é confirmada no Apocalipse, o livro das realidades últimas da
Igreja e do mundo, onde volta a aparecer o sinal de uma «mulher», desta
vez «vestida de sol» (Apoc 12, 1).
Maria, Mãe do Verbo Incarnado, está colocada no próprio centro dessa «inimizade»,
dessa luta que acompanha o evoluir da história da humanidade sobre a
terra e a própria história da salvação. Neste seu lugar, ela, que faz
parte dos «humildes e pobres do Senhor», apresenta em si, como nenhum
outro dentre os seres humanos, aquela «magnificência de graça» com que o
Pai nos agraciou no seu amado Filho; e esta graça constitui a extraordinária grandeza e beleza
de todo o seu ser. Maria permanece, assim, diante de Deus e também
diante de toda a humanidade, como o sinal imutável e inviolável da
eleição por parte do mesmo Deus, de que fala a Carta paulina: «em Cristo nos elegeu antes da criação do mundo ... e nos predestinou para sermos seus filhos adoptivos» (Ef
1, 4. 5). Esta eleição é mais forte do que toda a experiência do mal e
do pecado, do que toda aquela «inimizade» pela qual está marcada toda a
história do homem. Nesta história, Maria permanece um sinal de segura
esperança.
2. Feliz daquela que acreditou
12. Logo depois de ter narrado a Anunciação, o Evangelista São Lucas
faz-nos de guia, seguindo os passos da Virgem em direcção a «uma cidade
de Judá» (Lc 1, 39). Segundo os estudiosos, esta cidade devia ser
a «Ain-Karim» de hoje, situada entre as montanhas, não distante de
Jerusalém. Maria dirigiu-se para lá «apressadamente», para visitar Isabel,
sua parente. O motivo desta visita há-de ser procurado também no facto
de Gabriel, durante a Anunciação, ter nomeado de maneira significativa
Isabel, que em idade avançada tinha concebido do marido Zacarias um
filho, pelo poder de Deus: «Isabel, tua parente, concebeu um filho, na
sua velhice; e está já no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril,
porque nada é impossível a Deus» (Lc 1, 36-37). O
mensageiro divino tinha feito recurso ao evento, que se realizara em
Isabel, para responder à pergunta de Maria: «Como se realizará isso,
pois eu não conheço homem?» (Lc 1, 34). Sim, será possível exactamente pelo «poder do Altíssimo», como e ainda mais do que no caso de Isabel.
Maria dirige-se, pois, impelida pela caridade, a casa da sua parente.
Quando aí entrou, Isabel, ao responder à sua saudação, tendo sentido o
menino estremecer de alegria no próprio seio, «cheia do Espírito Santo»,
saúda por sua vez Maria em alta voz: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» (cf. Lc 1, 40-42). Esta proclamação e aclamação de Isabel deveria vir a entrar na Ave Maria,
como continuação da saudação do Anjo, tornando-se assim uma das orações
mais frequentes da Igreja. Mas são ainda mais significativas as
palavras de Isabel, na pergunta que se segue: «E donde me é dada a dita
que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?» (Lc 1, 43).
Isabel dá testemunho acerca de Maria: reconhece e proclama que diante de
si está a Mãe do Senhor, a Mãe do Messias. Neste testemunho participa
também o filho que Isabel traz no seio: «estremeceu de alegria o menino
no meu seio» (Lc 1, 44). O menino é o futuro João Baptista, que, nas margens do Jordão, indicará em Jesus o Messias.
Todas as palavras, nesta saudação de Isabel, são densas de significado; no entanto, parece ser algo de importância fundamental o que ela diz no final: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45). [28]
Estas palavras podem ser postas ao lado do apelativo «cheia de graça»
da saudação do Anjo. Em ambos os textos se revela um conteúdo
mariológico essencial, isto é, a verdade acerca de Maria, cuja presença
se tornou real no mistério de Cristo, precisamente porque ela
«acreditou». A plenitude de graça, anunciada pelo Anjo, significa o dom de Deus mesmo; a fé de Maria, proclamada por Isabel aquando da Visitação, mostra como a Virgem de Nazaré tinha correspondido a este dom.
13. «A Deus que revela é devida «a obediência da fé» (Rom 16, 26; cf. Rom 1, 5; 2 Cor 10, 5-6), pela qual o homem se entrega total e livremente a Deus», como ensina o Concílio. [29]
Exactamente esta descrição da fé teve em Maria uma actuação perfeita. O
momento «decisivo» foi a Anunciação; e as palavras de Isabel ― «feliz
daquela que acreditou» ― referem-se em primeiro lugar precisamente a
esse momento. [30]
Na Anunciação, de facto, Maria entregou-se a Deus
completamente, manifestando «a obediência da fé» Àquele que lhe falava,
mediante o seu mensageiro, prestando-lhe o «obséquio pleno da
inteligência e da vontade». [31] Ela respondeu, pois, com todo o seu «eu» humano e feminino.
Nesta resposta de fé estava contida uma cooperação perfeita com a
«prévia e concomitante ajuda da graça divina» e uma disponibilidade
perfeita à acção do Espírito Santo, o qual «aperfeiçoa continuamente a
fé mediante os seus dons». [32]
A palavra de Deus vivo, anunciada pelo Anjo a Maria, referia-se a ela
própria: «Eis que conceberás e darás à luz um filho» (Lc 1, 31).
Acolhendo este anúncio, Maria devia tornar-se a «Mãe do Senhor» e
realizar-se-ia nela o mistério divino da Incarnação: «O Pai das
misericórdias quis que a aceitação por parte da que Ele predestinara
para mãe, precedesse a Incarnação». [33]
E Maria dá esse consenso, depois de ter ouvido todas as palavras do
mensageiro. Diz: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua
palavra» (Lc 1, 38). Este fiat de Maria ― «faça-se em mim»
― decidiu, da parte humana, do cumprimento do mistério divino. Existe
uma consonância plena com as palavras do Filho que, segundo a Carta aos Hebreus, ao vir a este mundo, diz ao Pai: «Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas formaste-me um corpo... Eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade» (Hebr 10, 5-7). O mistério da Incarnação realizou-se quando Maria pronunciou o seu «fiat»:
«Faça-se em mim segundo a tua palavra», tornando possível, pelo que a
ela competia no desígnio divino, a aceitação do oferecimento do seu
Filho.
Maria pronunciou este «fiat» mediante a fé. Foi mediante a fé
que ela «se entregou a Deus» sem reservas e «se consagrou totalmente,
como escrava do Senhor, à pessoa e à obra do seu Filho». [34] E este Filho ― como ensinam os Padres da Igreja ― concebeu-o na mente antes de o conceber no seio: precisamente mediante a fé! [35] Com justeza, portanto, Isabel louva Maria: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento
as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor». Essas coisas já se
tinham cumprido: Maria de Nazaré apresenta-se no limiar da casa de
Isabel e de Zacarias como mãe do Filho de Deus. É essa a descoberta
letificante de Isabel: «A mãe do meu Senhor vem ter comigo!».
14. Por conseguinte, também a fé de Maria pode ser comparada com a de Abraão, a quem o Apóstolo chama «nosso pai na fé» (cf. Rom
4, 12). Na economia salvífica da Revelação divina, a fé de Abraão
constitui o início da Antiga Aliança; a fé de Maria, na Anunciação, dá
início à Nova Aliança. Assim como Abraão, «esperando contra toda a esperança, acreditou que haveria de se tornar pai de muitos povos» (cf. Rom
4, 18 ), também Maria, no momento da Anunciação, depois de ter
declarado a sua condição de virgem (»Como será isto, se eu não conheço
homem?»), acreditou que pelo poder do Altíssimo, por obra do
Espírito Santo, se tornaria a mãe do Filho de Deus segundo a revelação
do Anjo: «Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de
Deus» (Lc 1, 35).
Entretanto, as palavras de Isabel: «Feliz daquela que acreditou» não
se aplicam apenas àquele momento particular da Anunciação. Esta
representa, sem dúvida, o momento culminante da fé de Maria na
expectação de Cristo, mas é também o ponto de partida, no qual se inicia
todo o seu «itinerário para Deus», toda a sua caminhada de fé. E será
ao longo deste caminho, que a «obediência» por ela professada à palavra
da revelação divina irá ser actuada, de modo eminente e verdadeiramente
heróico ou, melhor dito, com um heroísmo de fé cada vez maior. E esta
«obediência da fé» da parte de Maria, durante toda a sua caminhada, terá
surpreendentes analogias com a fé de Abraão. Do mesmo modo que o
patriarca do Povo de Deus, também Maria, ao longo do caminho do seu fiat filial e materno, «esperando contra toda a esperança, acreditou».
Especialmente ao longo de algumas fases deste seu caminhar, a bênção
concedida «àquela que acreditou» tornar-se-á manifesta com particular
evidência. Acreditar quer dizer «abandonar-se» à própria verdade da
palavra de Deus vivo, sabendo e reconhecendo humildemente «quanto são
insondáveis os seus desígnios e imperscrutáveis as suas vias» (Rom
11, 33). Maria, que pela eterna vontade do Altíssimo veio a
encontrar-se, por assim dizer, no próprio centro daquelas
«imperscrutáveis vias» e daqueles «insondáveis desígnios» de Deus,
conforma-se a eles na obscuridade da fé, aceitando plenamente e com o
coração aberto tudo aquilo que é disposição dos desígnios divinos.
15. Na Anunciação, quando Maria ouve falar do Filho de que deve
tornar-se genetriz e ao qual «porá o nome de Jesus» (= Salvador), fica
também a conhecer que «o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David»,
que ele «reinará sobre a casa de Jacob eternamente e o seu reinado não
terá fim» (Lc 1, 32-33). Era neste sentido que se orientava toda a
esperança de Israel. O Messias prometido devia ser «grande»; e também o
mensageiro celeste anuncia que «será grande»: grande, quer pelo nome de Filho do Altíssimo, quer pelo facto de assumir a herança de David.
Há-de, portanto, ser rei, há-de reinar «sobre a casa de Jacob». Maria
tinha crescido no meio desta expectativa do seu povo: estaria ela em
condições de captar, no momento da Anunciação, qual o sentido essencial
que podiam ter as palavras do Anjo, e como devia ser entendido aquele
«reino», que «não terá fim»?
Se bem que, mediante a fé, ela possa ter-se sentido naquele instante mãe do «Messias-rei», contudo respondeu: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc
1, 38). Desde o primeiro momento, Maria professou sobretudo «a
obediência da fé», abandonando-se àquele sentido que dava às palavras da
Anunciação Aquele do qual elas provinham: o próprio Deus.
16. No caminho da «obediência da fé», ainda, Maria, um pouco mais tarde, ouve outras palavras: aquelas que foram pronunciadas por Simeão,
no templo de Jerusalém. Estava-se já no quadragésimo dia depois do
nascimento de Jesus, quando Maria e José, segundo a prescrição da Lei de
Moisés, «levaram o menino a Jerusalém, para o oferecer ao Senhor» (Lc
2, 22). O nascimento verificara-se em condições de extrema pobreza. Com
efeito, sabemos através de São Lucas que, por ocasião do recenseamento
da população ordenado pelas autoridades romanas, Maria se dirigiu com
José a Belém; e não tendo encontrado «lugar na hospedaria», deu à luz o seu Filho num estábulo e «reclinou-o numa manjedoura» (cf. Lc 2, 7).
Um homem justo e piedoso, de nome Simeão, aparece naquele momento dos
inícios do «itinerário» da fé de Maria. As suas palavras, sugeridas
pelo Espírito Santo (cf. Lc 2, 25-27), confirmam a verdade da
Anunciação. Lemos, efectivamente, que ele «tomou nos seus braços» o
menino, ao qual ― segundo a palavra do Anjo ― deram o nome de Jesus»
(cf. Lc 2, 21). Aquilo que Simeão diz está conforme com o
significado deste nome, que quer dizer Salvador: «Deus é a salvação».
Dirigindo-se ao Senhor, ele exprime-se assim: «Os meus olhos viram a tua
salvação, que preparaste em favor de todos os povos; luz para iluminar as nações e glória de Israel, teu povo» (Lc
2, 30-32). Nessa mesma altura, porém, Simeão dirige-se a Maria com as
seguintes palavras: «Ele é destinado a ser ocasião de queda e de
ressurgimento para muitos em Israel e a ser um sinal de contradição...
a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações»; e acrescenta,
com referência directa a Maria: «E tu mesma terás a alma trespassada
por uma espada» (Lc 2, 34-35). As palavras de Simeão colocam sob
uma luz nova o anúncio que Maria tinha ouvido do Anjo: Jesus é o
Salvador, é «luz para iluminar» os homens. Não foi isso que, de algum
modo, se manifestou na noite de Natal, quando os pastores vieram ao
estábulo? (cf. Lc 2, 8-20). Não foi isso o que se manifestou também e ainda mais, aquando da vinda dos Magos do Oriente? (cf. Mt
2, 1-12 ) . Ao mesmo tempo, porém, logo desde o início da sua vida, o
Filho de Maria, e com ele a sua Mãe, experimentarão em si mesmos a
verdade daquelas outras palavras de Simeão: «Sinal de contradição» (Lc 2, 34). Aquilo que Simeão diz apresenta-se como um segundo anúncio a Maria,
uma vez que indica a dimensão histórica concreta em que o Filho
realizará a sua missão, ou seja, na incompreensão e na dor. Se este
outro anúncio confirma, por um lado, a sua fé no cumprimento das
promessas divinas da salvação, por outro, também lhe revela que ela terá
que viver a sua obediência de fé no sofrimento, ao lado do Salvador que
sofre, e que a sua maternidade será obscura e marcada pela dor. Com
efeito, depois da visita dos Magos, depois de eles lhe terem rendido
homenagem (»prostrados o adoraram») e depois da oferta dos dons (cf. Mt 2, 11), sucede que Maria, com o menino, tem de fugir para o Egipto sob a proteção desvelada de José, porque Herodes estava a «procurar o menino para o matar» (cf. Mt 2, 13). E teriam de ficar no Egipto até à morte de Herodes (cf. Mt 2, 15).
17. Depois da morte de Herodes, quando se dá o retorno da sagrada família a Nazaré, inicia-se o longo período da vida oculta. Aquela que «acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45) vive no dia a dia o conteúdo dessas palavras. O Filho a quem deu o nome de Jesus
está quotidianamente ao seu lado; assim, no contacto com ele, usa
certamente este nome, o que não devia, aliás, causar estranheza a
ninguém, tratando-se de um nome que era usual, desde havia muito tempo,
em Israel. Maria sabe, no entanto, que aquele a quem foi posto o nome de
Jesus, foi chamado pelo Anjo «Filho do Altíssimo» (cf. Lc
1, 32). Maria sabe que o concebeu e deu à luz «sem ter conhecido
homem», por obra do Espírito Santo, com o poder do Altíssimo que sobre
ela estendeu a sua sombra (cf. Lc 1, 35), tal como nos tempos de Moisés e dos antepassados a nuvem velava a presença de Deus (cf. Ex 24, 16; 40, 34-35; 1 Rs
8, 10-12). Maria sabe, portanto, que o Filho, por ela dado à luz
virginalmente, é precisamente aquele «Santo», «o Filho de Deus» de que
lhe havia falado o Anjo.
Durante os anos da vida oculta de Jesus na casa de Nazaré, também a vida de Maria «está escondida com Cristo em Deus» (cf. Col
3, 3) mediante a fé. A fé, efectivamente, é um contacto com o mistério
de Deus. Maria está constante e quotidianamente em contacto com o
mistério inefável de Deus que se fêz homem, mistério que supera tudo
aquilo que foi revelado na Antiga Aliança. Desde o momento da
Anunciação, a mente da Virgem-Mãe foi introduzida na «novidade» radical
de autorevelação de Deus e tornada cônscia do mistério. Ela é a primeira
daqueles «pequeninos» dos quais um dia Jesus dirá: «Pai, ... escondeste
estas coisas aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25). Na verdade, «ninguém conhece o Filho senão o Pai» (Mt 11, 27). Como poderá então Maria «conhecer o Filho»? Certamente, não como o Pai o conhece; e no entanto, ela é a primeira entre aqueles aos quais o Pai «o quis revelar» (cf. Mt
11, 26-27; 1 Cor 2, 11). Se, porém, desde o momento da Anunciação lhe
foi revelado o Filho, que apenas o Pai conhece completamente, como
Aquele que o gera no «hoje» eterno (cf. Sl 2, 7), então Maria, a
Mãe, está em contacto com a verdade do seu Filho somente na fé e
mediante a fé! Portanto, é feliz porque «acreditou»; e acredita dia a dia,
no meio de todas as provações e contrariedades do período da infância
de Jesus e, depois, durante os anos da sua vida oculta em Nazaré, quando
ele «lhes era submisso» (Lc 2, 51): submisso a Maria e também a
José, porque José, diante dos homens, fazia para ele as vezes de pai; e
era por isso que o Filho de Maria era tido pela gente do lugar como «o
filho do carpinteiro» (Mt 13, 55).
A Mãe, por conseguinte, lembrada de tudo o que lhe havia sido dito
acerca deste seu Filho, na Anunciação e nos acontecimentos sucessivos, é
portadora em si mesma da «novidade» radical da fé: o início da Nova Aliança. Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração,
unido a uma espécie de «noite da fé» ― para usar as palavras de São
João da Cruz ― como que um «véu» através do qual é forçoso aproximar-se
do Invisível e viver na intimidade com o mistério. [36]Foi deste modo, efectivamente, que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé, à medida em que Jesus «crescia em sabedoria ... e graça, diante de Deus e dos homens» (Lc
2, 52). Manifestava-se cada vez mais aos olhos dos homens a predilecção
que Deus tinha por ele. A primeira entre estas criaturas humanas
admitidas à descoberta de Cristo foi Maria que, com Ele e com José,
vivia na mesma casa em Nazaré.
Todavia, na ocasião em que o reencontraram no templo, à pergunta da Mãe: «Por que procedeste assim connosco?», Jesus ― então menino de doze anos
― respondeu: «Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?»; e
o Evangelista acrescenta: «Mas eles (José e Maria) não entenderam as
suas palavras» (Lc 2, 48-50). Portanto, Jesus tinha a consciência de que «só o Pai conhece o Filho» (cf. Mt
11, 27); tanto assim, que até aquela a quem tinha sido revelado mais
profundamente o mistério da sua filiação divina, a sua Mãe, vivia na
intimidade com este mistério somente mediante a fé! Encontrando-se
constantemente ao lado do Filho, sob o mesmo tecto, e «conservando
fielmente a união com o Filho» Ela «avançava na peregrinação da fé»,
como acentua o Concílio. [37] E assim sucedeu também durante a vida pública de Cristo (cf. Mc
3, 21-35) pelo que, dia a dia, se cumpriram nela as palavras
abençoantes pronunciadas por Isabel, aquando da Visitação: «Feliz
daquela que acreditou».
18. Estas palavras abençoantes atingem a plenitude do seu significado, quando Maria está aos pés da Cruz do seu Filho (cf. Jo
19, 25). O Concílio afirma que isso «aconteceu não sem um desígnio
divino»: «padecendo acerbamente com o seu Unigénito, associando-se com
ânimo maternal ao seu sacrifício e consentindo com amor na imolação da
vítima que ela havia gerado», foi deste modo que Maria «conservou
fielmente a união com seu Filho até à Cruz», [38]
a união mediante a fé: a mesma fé com a qual tinha acolhido a revelação
do Anjo no momento da Anunciação. Nesse momento ela tinha também ouvido
dizer: «será grande ..., o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de seu pai David..., reinará eternamente na casa de Jacob e o seu reinado não terá fim» (Lc 1, 32-33).
E agora, estando ali aos pés da Cruz, Maria é testemunha, humanamente falando, do desmentido cabal dessas palavras.
O seu Filho agoniza, suspenso naquele madeiro como um condenado.
«Desprezado e rejeitado pelos homens; homem das dores...; era
menosprezado e nenhum caso fazíamos dele» ... como que destruído (cf. Is 53, 3-5 ). Quão grande e quanto foi heróica então a «obediência da fé»
demonstrada por Maria diante dos «insondáveis desígnios» de Deus! Como
ela se «abandonou nas mãos de Deus» sem reservas, «prestando o pleno
obséquio da inteligência e da vontade» [39] Àquele cujas «vias são imperscrutáveis!» (cf. Rom
11, 33). E, ao mesmo tempo, quanto se mostra potente a acção da graça
na sua alma e quanto é penetrante a influência do Espírito Santo, da sua
luz e da sua virtude!
Mediante essa sua fé, Maria está perfeitamente unida a Cristo no seu despojamento.
Com efeito, «Jesus Cristo, ... subsistindo na natureza divina, não
julgou o ser igual a Deus, um bem a que não devesse nunca renunciar; mas
despojou-se a si mesmo tomando a forma de servo, tornando-se semelhante
aos homens»: precisamente sobre o Gólgota «humilhou-se a si mesmo,
fazendo-se obediente até à morte, e morte de Cruz» (cf. Flp 2,
5-8). E aos pés da Cruz, Maria participa mediante a fé no mistério
desconcertante desse despojamento. Isso constitui, talvez, a mais
profunda «kénose» da fé na história da humanidade. Mediante a fé,
a Mãe participa na morte do Filho, na sua morte redentora; mas, bem
diferente da fé dos discípulos, que se davam à fuga, a fé de Maria era
muito mais esclarecida. Sobre o Gólgota, Jesus confirmou
definitivamente, por meio da Cruz, ser «o sinal de contradição» predito
por Simeão. Ao mesmo tempo, cumpriram-se aí as palavras dirigidas pelo
mesmo ancião a Maria: «E tu mesma terás a alma trespassada por uma
espada». [40]
19. Sim, verdadeiramente, «feliz daquela que acreditou»! Estas
palavras, pronunciadas por Isabel já depois da Anunciação, parecem
ressoar aqui, aos pés da Cruz, com suprema eloquência; e a força que
elas encerram, torna-se penetrante. Da Cruz ou, por assim dizer, do
próprio coração do mistério da Redenção, se esparge a irradiação e se
dilata a perspectiva daquelas palavras abençoadoras da sua fé. Elas
remontam «até ao princípio» e, como participação no sacrifício de
Cristo, novo Adão, tornam-se, em certo sentido, o contrabalanço da desobediência e da incredulidade
presentes no pecado dos nossos primeiros pais. Assim o ensinam os
Padres da Igreja, especialmente Santo Ireneu, citado na Constituição Lumen gentium:
«O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e
aquilo que a Virgem Eva atou, com a sua incredulidade, a Virgem Maria desatou-o com a sua fé». [41]
À luz desta comparação com Eva, os mesmos Padres ― como recorda ainda o
Concílio ― chamam a Maria «mãe dos vivos» e afirmam muitas vezes: «A
morte veio por Eva, a vida por meio de Maria». [42]
Com razão, portanto, podemos encontrar na expressão «feliz daquela que acreditou» como que uma chave
que nos abre o acesso à realidade íntima de Maria: daquela que foi
saudada pelo Anjo como «cheia da graça». Se como «cheia de graça» ela
esteve eternamente presente no mistério de Cristo, agora, mediante a fé,
torna-se dele participante em toda a extensão do seu itinerário
terreno: «avançou na peregrinação da fé» e, ao mesmo tempo, de maneira
discreta, mas directa e eficazmente, tornava presente aos homens o mesmo mistério de Cristo.
E ainda continua a fazê-lo. E mediante o mistério de Cristo, também ela
está presente entre os homens. Deste modo, através do mistério do
Filho, esclarece-se também o mistério da Mãe.
3. Eis a tua mãe
20. O Evangelho de São Lucas regista o momento em que «uma mulher
ergueu a voz do meio da multidão e disse», dirigindo-se a Jesus: «Ditoso o ventre que te trouxe e os seios a que foste amamentado!» (Lc
11, 27). Estas palavras constituíam um louvor para Maria, como mãe de
Jesus segundo a carne. A Mãe de Jesus talvez não fosse conhecida
pessoalmente por essa mulher; de facto, quando Jesus iniciou a sua
actividade messiânica, Maria não o acompanhava, mas continuava a viver
em Nazaré. Dir-se-ia que as palavras dessa mulher desconhecida a fizeram
sair, de algum modo, do seu escondimento.
Através de tais palavras lampejou no meio da multidão, ao menos por
um instante, o evangelho da infância de Jesus. É o evangelho em que
Maria está presente como a mãe que concebe Jesus no seu seio, o dá à luz
e maternamente o amamenta: a mãe-nutriz, a que alude aquela mulher do
povo. Graças a esta maternidade, Jesus ― Filho do Altíssimo (cf. Lc 1, 32 ) ― é um verdadeiro filho do homem. É «carne», como todos os homens. é «o Verbo (que) se fez carne» (cf. Jo 1, 14). É carne e sangue de Maria! [43]
Mas, às palavras abençoantes proferidas por aquela mulher em relação à
sua genetriz segundo a carne, Jesus responde de modo significativo:
«Ditosos antes os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática» (Lc
11, 28). Ele quer desviar a atenção da maternidade entendida só como um
vínculo do sangue, para a orientar no sentido daqueles vínculos
misteriosos do espírito, que se formam com o prestar ouvidos e com a
observância da palavra de Deus.
A mesma transferência, na esfera dos valores espirituais, delineia-se
ainda mais claramente numa outra resposta de Jesus, relatada por todos
os Sinópticos. Quando foi anunciado ao mesmo Jesus que a sua «mãe e os
seus irmãos estavam lá fora e desejavam vê-lo», ele respondeu: «Minha
mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em
prática» (cf. Lc 8, 20-21). Disse isto «percorrendo com o olhar
os que estavam sentados à volta dele», como lemos em São Marcos (3, 34)
ou, segundo São Mateus (12, 49), «indicando com a mão os seus
discípulos».
Estas expressões parecem situar-se na linha daquilo que Jesus ― então menino de doze anos ― respondeu a Maria e José, quando foi reencontrado, depois de três dias, no templo de Jerusalém.
Agora, uma vez que Jesus já tinha saído de Nazaré para dar início à sua vida pública por toda a Palestina, estava doravante completa e exclusivamente «ocupado nas coisas do Pai» (cf. Lc
2, 49). Ocupava-se em anunciar o Reino: o «Reino de Deus» e as «coisas
do Pai», que dão também uma dimensão nova e um sentido novo a tudo
aquilo que é humano; e, por conseguinte, a todos os laços humanos, em
relação com os fins e as funções estabelecidos para cada um dos homens.
Com esta nova dimensão, também um laço, como o da «fraternidade»
significa algo de diverso da «fraternidade segundo a carne», que provém
da origem comum dos mesmos pais. E até mesmo a «maternidade», vista na dimensão do Reino de Deus, na irradiação da paternidade do próprio Deus, alcança um outro sentido. Com as palavras referidas por São Lucas, Jesus ensina precisamente este novo sentido da maternidade.
Ter-se-á afastado, por causa disto, daquela que foi sua mãe, a sua
genetriz segundo a carne? Desejará, porventura, deixá-la na sombra do
escondimento, que ela própria escolheu? Embora assim possa parecer, se
nos ativermos só ao som material daquelas palavras, devemos observar, no
entanto, que a maternidade nova e diversa, de que Jesus fala aos seus
discípulos, refere-se precisamente a Maria e de modo especialíssimo. Não
é, acaso, Maria a primeira dentre «aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática»? E
portanto, não se referirão sobretudo a ela aquelas palavras abençoantes
pronunciadas por Jesus, em resposta às palavras da mulher anónima?
Maria é digna, sem dúvida alguma, de tais palavras de bênção, pelo facto
de se ter tornado Mãe de Jesus segundo a carne (»Ditoso o ventre que te
trouxe e os seios a que foste amamentado»); mas é digna delas também e
sobretudo porque, logo desde o momento da Anunciação, acolheu a palavra
de Deus e porque nela acreditou e sempre foi obediente a Deus; ela, com efeito, «guardava» a palavra, meditava-a «no seu coração» (cf. Lc
1, 38-45; 2, 19. 51) e cumpria-a com toda a sua vida. Podemos,
portanto, afirmar que as palavras de bem-aventurança pronunciadas por
Jesus não se contrapõem, apesar das aparências, àquelas outras que foram
proferidas pela mulher desconhecida; mas antes, que com elas se
coadunam na pessoa desta Mãe-Virgem, que a si mesma se designou
simplesmente como «serva do Senhor» (Lc 1, 38). Se é verdade que «todas as gerações a chamarão bem-aventurada» (cf. Lc
1, 48), pode dizer-se que aquela mulher anónima foi a primeira a
confirmar, sem disso ter consciência, aquele versículo profético do Magnificat de Maria e a dar início ao Magnificat dos séculos.
Se Maria, mediante a fé, se tornou a genetriz do Filho que lhe
foi dado pelo Pai com o poder do Espírito Santo, conservando íntegra a
sua virgindade, com a mesma fé ela descobriu e acolheu a outra dimensão da maternidade,
revelada por Jesus no decorrer da sua missão messiânica. Pode dizer-se
que esta dimensão da maternidade era possuída por Maria desde o início,
isto é, desde o momento da concepção e do nascimento do Filho. Desde
então ela foi «aquela que acreditou». Mas, à medida que se ia
esclarecendo aos seus olhos e no seu espírito a missão do Filho, ela
própria, como Mãe, se ia abrindo cada vez mais para aquela «novidade» da maternidade,
que devia constituir a sua «parte» ao lado do Filho. Não declarara ela,
desde o princípio: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua
palavra»? (Lc 1, 38). Maria continuava, pois, mediante a fé, a
ouvir e a meditar aquela palavra, na qual se tornava cada vez mais
transparente, de um modo «que excede todo conhecimento» (Ef 3, 19), a autorevelação de Deus vivo. E assim, Maria Mãe tornava-se, em certo sentido, a primeira «discípula» do seu Filho,
a primeira a quem ele parecia dizer: «Segue-me», mesmo antes de dirigir
este chamamento aos Apóstolos ou a quaisquer outros (cf. Jo 1, 43).
21. Sob este ponto de vista, é particularmente eloquente aquele texto do Evangelho de São João,
que nos apresenta Maria nas bodas de Caná. Maria aparece aí como Mãe de
Jesus, que estava nos princípios da sua vida pública: «Celebravam-se
umas bodas em Caná de Galileia; e encontrava-se lá a mãe de Jesus. Foi também convidado para as bodas Jesus, com os seus discípulos (Jo
2, 1-2). Do texto resultaria que Jesus e os seus discípulos foram
convidados juntamente com Maria, quiçá por motivo da presença dela nessa
festa: o Filho parece ter sido convidado em atenção à Mãe. É conhecida a
sequência dos factos relacionados com esse convite: aquele «início dos
milagres» feitos por Jesus ― a água transformada em vinho ― que leva o
Evangelista a dizer: Jesus «manifestou a sua glória e os seus discípulos
acreditaram nele» (Jo 2, 11).
Maria está presente em Caná de Galileia como Mãe de Jesus e contribui,
de modo significativo, para aquele «início dos milagres», que revelam o
poder messiânico do seu Filho. «Ora, vindo a faltar o vinho, a Mãe de
Jesus disse-lhe: «não têm mais vinho». E Jesus respondeu-lhe: «Que
importa isso, a mim e a ti, ó mulher? Ainda não chegou a minha hora»» (Jo
2, 3-4). No Evangelho de São João aquela «hora» significa o momento
estabelecido pelo Pai, em que o Filho levará a cabo a sua obra e há-de
ser glorificado (cf. Jo 7, 30; 8, 20; 12, 23. 27; 13, 1; 17, 1;
19, 27). Muito embora a resposta de Jesus à sua Mãe tenha as aparências
de uma recusa (sobretudo se, mais do que na interrogação, se reparar
naquela afirmação firme: «Ainda não chegou a minha hora»), mesmo assim
Maria dirige-se aos que serviam e diz-lhes: «Fazei aquilo que ele vos
disser» (Jo 2, 5). Então Jesus ordena a esses servos que encham
as talhas de água; e a água transforma-se em vinho, melhor do que aquele
que fora servido anteriormente aos convidados do banquete nupcial.
Que entendimento profundo terá havido entre Jesus e a sua Mãe? Como
se poderá explorar o mistério da sua íntima união espiritual? De
qualquer modo, o facto é eloquente. Naquele evento é bem certo que já se
delineia bastante claramente a nova dimensão, o sentido novo da maternidade de Maria.
Esta tem um significado que não está encerrado exclusivamente nas
palavras de Jesus e nos diversos episódios referidos pelos Sinópticos (Lc 11, 27-28 e Lc 8, 19-21; Mt 12, 46-50; Mc
3, 31-35). Nestes textos Jesus tem o intuito, sobretudo, de contrapor a
maternidade que resulta do próprio facto do nascimento, àquilo que esta
«maternidade» (assim como a «fraternidade») deve ser na dimensão do
Reino de Deus, na irradiação salvífica da paternidade do mesmo Deus. No
texto de São João, ao contrário, a partir da descrição dos factos de
Caná, esboça-se aquilo em que se manifesta concretamente esta
maternidade nova, segundo o espírito e não somente segundo a carne, ou
seja, a solicitude de Maria pelos homens, o seu ir ao encontro
deles, na vasta gama das suas carências e necessidades. Em Caná da
Galileia torna-se patente só um aspecto concreto da indigência humana,
pequeno aparentemente e de pouca importância (»Não têm mais vinho»). Mas
é algo que tem um valor simbólico: aquele ir ao encontro das
necessidades do homem significa, ao mesmo tempo, introduzi-las no âmbito
da missão messiânica e do poder salvífico de Cristo. Dá-se, portanto,
uma mediação: Maria põe-se de permeio entre o seu Filho e os homens na
realidade das suas privações, das suas indigências e dos seus
sofrimentos. Põe-se de «permeio», isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe,
consciente de que como tal pode ― ou antes, «tem o direito de» ― fazer
presente ao Filho as necessidades dos homens. A sua mediação, portanto,
tem um carácter de intercessão: Maria «intercede» pelos homens. E não é
tudo: como Mãe deseja também que se manifeste o poder messiânico do Filho,
ou seja, o seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras
humanas, a libertar o homem do mal que, sob diversas formas e em
diversas proporções, faz sentir o peso na sua vida. Precisamente como o
profeta Isaías tinha predito acerca do Messias, no famoso texto a que
Jesus se refere na presença dos seus conterrâneos de Nazaré: «Para
anunciar aos pobres a boa-nova me enviou, para proclamar aos
prisioneiros a libertação e aos cegos a vista ...» (cf. Lc 4, 18).
Outro elemento essencial desta função maternal de Maria pode ser
captado nas palavras dirigidas aos que serviam à mesa: «Fazei aquilo que
ele vos disser». A Mãe de Cristo apresenta-se diante dos homens como porta-voz da vontade do Filho,
como quem indica aquelas exigências que devem ser satisfeitas, para que
possa manifestar-se o poder salvífico do Messias. Em Caná, graças à
intercessão de Maria e à obediência dos servos, Jesus dá início à «sua
hora». Em Caná, Maria aparece como quem acredita em Jesus: a sua fé provoca da parte dele o primeiro «milagre» e contribui para suscitar a fé dos discípulos.
22. Podemos dizer, por conseguinte, que nesta página do Evangelho de
São João encontramos como que um primeiro assomo da verdade acerca da
solicitude maternal de Maria. Esta verdade teve a sua expressão também
no magistério do recente Concílio. É importante notar que a
função maternal de Maria é por ele ilustrada na sua relação com a
mediação de Cristo. Com efeito, podemos aí ler: «A função maternal de
Maria para com os homens, de modo algum obscurece ou diminui esta única
mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia», porque «um só é o
mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus» (1 Tim 2,
5). Esta função maternal de Maria promana, segundo o beneplácito de
Deus, «da superabundância dos méritos de Cristo, funda-se na sua
mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia». [44] É precisamente neste sentido que o evento de Caná da Galileia nos oferece como que um preanúncio da mediação de Maria, toda ela orientada para Cristo e propendente para a revelação do seu poder salvífico.
Do texto joanino transparece que se trata de uma mediação materna.
Como proclama o Concílio: Maria «foi para nós mãe na ordem da graça».
Esta maternidade na ordem da graça resultou da sua própria maternidade
divina: porque sendo ela, por disposição da divina Providência,
mãe-nutriz do Redentor, foi associada à sua obra, de maneira única, como
«amiga generosa» e humilde «serva do Senhor», que «cooperou ... na obra
do Salvador com a obediência e com a sua fé, esperança e caridade
ardente, para restaurar nas almas a vida sobrenatural». [45] «E esta maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção... até à consumação perpétua de todos os eleitos». [46]
23. Se esta passagem do Evangelho de São João, sobre os factos de
Caná, apresenta a maternidade desvelada de Maria no início da actividade
messiânica de Cristo, há uma outra passagem do mesmo Evangelho que
confirma esta maternidade na economia salvífica da graça no seu momento
culminante, isto é, quando se realiza o sacrifício de Cristo na Cruz, o
seu mistério pascal. A descrição de São João é concisa: «Estavam junto à Cruz de Jesus
sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopá, e Maria de Magdala.
Jesus, então, vendo a mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à
mãe: «Mulher, eis o teu filho!». Depois, disse ao discípulo: «Eis a tua
mãe!». E a partir daquele momento, o discípulo levou-a para a sua casa» (Jo 19-, 25-27).
Neste episódio reconhece-se, sem dúvida, uma expressão do desvelo
singular do Filho para com a Mãe, que Ele ia deixar no meio de tanto
sofrimento. Todavia, quanto ao sentido deste desvelo, o «testamento da
Cruz» de Cristo diz algo mais. Jesus põe em relevo um vínculo novo entre
Mãe e Filho, do qual confirma solenemente toda a verdade e realidade.
Pode dizer-se que, se a maternidade de Maria em relação aos homens já
tinha aflorado e se tinha delineado em precedência, agora é claramente
precisada e estabelecida: ela emerge da maturação definitiva do mistério pascal do Redentor.
A Mãe de Cristo, encontrando-se na irradiação directa deste mistério
que abrange o homem ― todos e cada um dos homens ― é dada ao homem ― a
todos e cada um dos homens ― como mãe. Este homem aos pés da Cruz é
João, «o discípulo que ele amava». [47] Porém não é ele como um só homem. A Tradição e o Concílio não hesitam em chamar a Maria «Mãe de Cristo e Mãe dos homens»:
ela está, efectivamente, associada na descendência de Adão com todos os
homens..., mais ainda, é verdadeiramente mãe dos membros (de
Cristo)..., porque cooperou com o seu amor para o nascimento dos fiéis
na Igreja». [48]
Esta «nova maternidade de Maria», portanto, gerada pela fé, é fruto do «novo» amor, que nela amadureceu definitivamente aos pés da Cruz, mediante a sua participação no amor redentor do Filho.
24. Encontramo-nos assim no próprio centro do cumprimento da
promessa, contida no Proto-Evangelho: a «descendência da mulher esmagará
a cabeça da serpente» (cf. Gén 3, 15). Jesus Cristo, de facto,
com a sua morte redentora vence o mal do pecado e da morte nas suas
próprias raízes. É significativo que, dirigindo-se à Mãe do alto da
Cruz, Ele lhe chame «mulher», ao dizer-lhe: «Mulher, eis o teu filho».
Com o mesmo termo, de resto, se tinha dirigido também a ela em Caná (cf.
Jo 2, 4). Como duvidar de que, especialmente agora, no alto do
Gólgota, esta frase atinja em profundidade no mistério de Maria, pondo
em realce o «lugar» singular que ela tem em toda a economia da salvação? Como
ensina o Concílio, com Maria, «excelsa Filha de Sião, passada a longa
espera da promessa, completam-se os tempos e instaura-se uma nova
economia, quando o Filho de Deus assumiu dela a natureza humana, para
libertar o homem do pecado, por meio dos mistérios da sua carne». [49]
As palavras que Jesus pronuncia do alto da Cruz significam que a maternidade da sua Genetriz tem uma «nova» continuação na Igreja e mediante a Igreja,
simbolizada e representada por São João. Deste modo, aquela que, como
«a cheia de graça», foi introduzida no mistério de Cristo para ser sua
Mãe, isto é, a Santa Genetriz de Deus, por meio da Igreja permanece naquele mistério como «a mulher» indicada pelo Livro do Génesis (cf. 3, 15), no princípio, e pelo Apocalipse
(cf. 12, 1), no final da história da salvação. Segundo o eterno
desígnio da Providência, a maternidade divina de Maria deve estender-se à
Igreja, como estão a indicar certas afirmações da Tradição, segundo as
quais a maternidade de Maria para com a Igreja é o reflexo e o
prolongamento da sua maternidade para com o Filho de Deus. [50]
O próprio momento do nascimento da Igreja e da sua plena manifestação
ao mundo, segundo o Concílio, já deixa entrever esta continuidade da
maternidade de Maria: «Tendo sido do agrado de Deus não manifestar
solenemente o mistério da salvação humana, antes de ter derramado o
Espírito prometido por Cristo, vemos os Apóstolos, antes do dia do Pentecostes, «assíduos e concordes na oração, com algumas mulheres e com Maria a Mãe de Jesus e com os irmãos dele» (Act
1, 14), implorando também Maria, com suas orações, o dom daquele
Espírito que já tinha estendido sobre ela a sua sombra, na Anunciação». [51]
Sendo assim, na economia redentora da graça, actuada sob a acção do
Espírito Santo, existe uma correspondência singular entre o momento da
Incarnação do Verbo e o momento do nascimento da Igreja. E a pessoa que
une estes dois momentos é Maria: Maria em Nazaré e Maria no Cenáculo de Jerusalém.
Em ambos os casos, a sua presença discreta, mas essencial, indica a via
do «nascimento do Espírito». Assim, aquela que está presente no
mistério de Cristo como Mãe, torna-se ― por vontade do Filho e por obra
do Espírito Santo ― presente no mistério da Igreja. E também na Igreja
continua a ser uma presença materna, como indicam as palavras
pronunciadas na Cruz: «Mulher, eis o teu Filho»; «Eis a tua Mãe».
O sentido do Ano Mariano
48. O vínculo especial da humanidade com esta Mãe foi precisamente o
que me levou a proclamar na Igreja, no período que antecede a conclusão
do Segundo Milénio do nascimento de Cristo, um Ano Mariano. Uma
iniciativa semelhante a esta já se verificou no passado, quando o Papa
Pio XII proclamou o ano de 1954 como Ano Mariano, para dar realce à
excepcional santidade da Mãe de Cristo, expressa nos mistérios da sua
Imaculada Conceição (definida exactamente um século antes) e da sua
Assunção ao Céu. [141]
Seguindo a linha do Concílio Vaticano II, anima-me o desejo de pôr em relevo a presença especial da
Mãe de Deus no mistério de Cristo e da sua Igreja. Esta é uma dimensão
fundamental que dimana da Mariologia do Concílio, de cujo encerramento
já nos separam mais de vinte anos. O Sínodo extraordinário dos Bispos,
que se realizou em 1985, exortou a todos a seguirem fielmente o
magistério e as indicações do Concílio. Pode dizer-se que em ambos ― .
no Concílio e no Sínodo ― está contido aquilo que o Espírito Santo
deseja «dizer à Igreja» (cf. Apoc 2, 7.17.29; 3, 6.13.22) na fase presente da história.
Neste contexto, o Ano Mariano deverá promover também uma leitura nova
e aprofundada daquilo que o Concílio disse sobre a Bem-aventurada
Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja, a que se
referem as considerações contidas na presente Encíclica. Com esta
perspectiva, trata-se não só da doutrina da fé, mas também da vida de fé;
e, portanto, da autêntica «espiritualidade mariana», vista à luz da
Tradição e, especialmente, daquela espiritualidade a que nos exorta o
Concílio. [142] Além disso, a espiritualidade
mariana, assim como a devoção correspondente, tem uma riquíssima fonte
na experiência histórica das pessoas e das diversas comunidades cristãs,
que vivem no seio dos vários povos e nações, sobre toda a face da
terra. A este propósito, é-me grato recordar, dentre as muitas
testemunhas e mestres de tal espiritualidade, a figura de São Luís Maria
Grignion de Montfort, [143]
o qual propõe aos cristãos a consagração a Cristo pelas mãos de Maria,
como meio eficaz para viverem fielmente os compromissos baptismais. E
registo ainda aqui, de bom grado, que também nos nossos dias não faltam
novas manifestações desta espiritualidade e devoção.
Há, portanto, pontos de referência seguros para os quais olhar e aos quais ater-se, no contexto deste Ano Mariano.
49. A celebração do mesmo Ano Mariano terá início na Solenidade do Pentecostes no dia 7 de Junho próximo.
Trata-se, efectivamente, não apenas de recordar que Maria «precedeu» o
ingresso de Cristo Senhor na história da humanidade, mas também de
salientar, à luz de Maria, que, desde que se realizou o mistério da
Incarnação, a história da humanidade entrou «na plenitude dos tempos» e
que a Igreja é o sinal desta plenitude. Como Povo de Deus, a Igreja vai
fazendo, mediante a fé, a peregrinação no sentido da eternidade no meio
de todos os povos e nações, peregrinação que começou no dia do
Pentecostes. A Mãe de Cristo, que esteve presente no princípio do
«tempo da Igreja» quando, durante os dias de espera do Espírito Santo,
era assídua na oração no meio dos Apóstolos e dos discípulos do seu
Filho, «precede» constantemente a Igreja nesta sua caminhada
através da história da humanidade. Ela é também aquela que, precisamente
como serva do Senhor, coopera sem cessar na obra da salvação realizada
por Cristo, seu Filho.
Assim, por meio deste Ano Mariano, a Igreja é chamada não só a
recordar tudo o que no seu passado testemunha a especial cooperação
materna da Mãe de Deus na obra da salvação em Cristo Senhor, mas também a
preparar para o futuro, na parte que lhe toca, os caminhos desta
cooperação salvífica, dado que, com o final do Segundo Milénio cristão,
se abre como que uma nova perspectiva.
50. Como já tivemos ocasião de recordar, também entre os irmãos
desunidos muitos honram e celebram a Mãe do Senhor, especialmente entre
os Orientais. É uma luz mariana projectada sobre o Ecumenismo. Mas
desejaria aqui recordar ainda, em particular, que durante o Ano Mariano
ocorrerá o Milénio do Baptismo de São Vladimiro, Grão-Príncipe de
Kiev (a. 988), que deu início ao Cristianismo nos territórios da «Rus'»
de então e, em seguida, em todos os territórios da Europa oriental; e
que, por esta via, mediante a obra de evangelização, o Cristianismo se
estendeu também para além da Europa, até aos territórios setentrionais
do Continente asiático. Desejaríamos, portanto, especialmente durante
este Ano, unir-nos na oração com todos aqueles que celebram o Milénio
desse Baptismo, ortodoxos e católicos, renovando e confirmando com o
Concílio, a vivência de sentimentos de alegria e consolação, pelo facto
de que «os Orientais ... acorrem a venerar a Mãe de Deus, sempre Virgem,
com fervor ardente e ânimo devoto». [144] Embora experimentemos ainda os efeitos dolorosos da separação, que se deu alguns decénios depois (a. 1054), podemos dizer que diante da Mãe de Cristo nos sentimos verdadeiros irmãos e irmãs
no âmbito daquele Povo messiânico chamado a ser uma única família de
Deus sobre a face da terra, como já tive ocasião de anunciar no passado
dia de Ano Novo: «Desejamos reconfirmar esta herança universal de todos
os filhos e filhas desta terra». [145]
Ao anunciar o Ano de Maria, eu precisava ainda que o seu encerramento será no ano seguinte, na solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, querendo realçar «o sinal grandioso no céu» de que fala o Apocalipse.
Deste modo, queremos também pôr em prática a exortação do Concílio, que
olha para Maria como um «sinal de esperança segura e de consolação para
o Povo de Deus peregrino». E essa exortação foi expressa pelo Concílio
com as seguintes palavras: «Dirijam todos os fiéis súplicas instantes à
Mãe de Deus e Mãe dos homens, para que ela, que assistiu com suas
orações aos começos da Igreja, também agora, no Céu, exaltada acima de
todos os bem-aventurados e dos anjos, interceda junto de seu Filho, na
comunhão de todos os santos, até que todas as famílias dos povos, quer
as que ostentam o nome cristão, quer as que ignoram ainda o seu
Salvador, se reúnam felizmente, em paz e concórdia, no único Povo de
Deus, para glória da santíssima e indivisa Trindade». [146]
3. O «Magnificat» da Igreja que está a caminho
35. Na fase actual da sua caminhada, a Igreja procura, pois,
reencontrar a união de todos os que professam a própria fé em Cristo,
para manifestar a obediência ao seu Senhor que orou por esta unidade,
antes do seu iminente sacrifício. Ela vai avançando na «sua
peregrinação... e anunciando a paixão e a morte do Senhor até que ele
venha». [87] «Prosseguindo entre as tentações e tribulações da caminhada, a Igreja é apoiada pela força da graça de Deus, que lhe foi prometida pelo Senhor,
para que não se afaste da perfeita fidelidade por causa da fraqueza
humana, mas permaneça digna esposa do seu Senhor e, com o auxílio do
Espírito Santo, não cesse de se renovar a si própria até que, pela Cruz,
chegue á luz que não conhece ocaso». [88]
A Virgem Maria está constantemente presente nesta caminhada de fé do
Povo de Deus em direcção à luz. Demonstra-o de modo especial o cântico do «Magnificat», que, tendo jorrado da profundidade da fé de Maria
na Visitação, não cessa de vibrar no coração da Igreja ao longo dos
séculos. Prova-o a sua recitação quotidiana na liturgia das Vésperas e
em muitos outros momentos de devoção, quer pessoal, quer comunitária.
«A minha alma glorifica o Senhor,
e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador,
porque olhou para a humildade da sua serva.
De hoje em diante todas as gerações
hão-de me chamar bem-aventurada.
Porque fez em mim grandes coisas o Todo-poderoso. E santo é o seu nome:
a sua misericórdia estende-se de geração em geração sobre aqueles que o temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos com os desígnios
que eles conceberam;
derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes
encheu de bens os famintos
e aos ricos despediu-os de mãos vazias.
Socorreu Israel, seu servo,
recordando-se da sua misericórdia,
como tinha prometido aos nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre» (Lc 1, 46-55).
36. Quando Isabel saudou a jovem parente, que acabava de chegar de Nazaré, Maria respondeu com o Magnificat.
Na sua saudação, Isabel tinha chamado a Maria: primeiro, «bendita» por
causa do «fruto do seu ventre»; e depois, «feliz» (bem-aventurada) por
causa da sua fé (cf. Lc 1, 42. 45 ). Estas duas palavras
abençoantes referiam-se directamente ao momento da Anunciação. Agora, na
Visitação, quando Isabel, na sua saudação, dá um testemunho daquele
momento culminante, a fé de Maria enriquece-se de uma nova consciência e
de uma nova expressão. Aquilo que no momento da Anunciação permanecia
escondido na profundidade da «obediência da fé» dir-se-ia que agora daí
irrompe, como uma chama clara e vivificante do espírito. As palavras
usadas por Maria, no limiar da casa de Isabel, constituem uma profissão inspirada desta sua fé, na qual se exprime a resposta à palavra da revelação,
com a elevação religiosa e poética de todo o seu ser no sentido de
Deus. Nessas palavras sublimes, que são ao mesmo tempo muito simples e
totalmente inspiradas nos textos sagrados do povo de Israel, [89]
transparece a experiência pessoal de Maria, o êxtase do seu coração.
Resplandece nelas um clarão do mistério de Deus, a glória da sua
inefável santidade, o amor eterno que, como um dom irrevogável, entra na história do homem.
Maria é a primeira a participar nesta nova revelação de Deus e,
mediante ela, nesta nova «autodoação» de Deus. Por isso proclama:
«Grandes coisas fez em mim ... e santo é o seu nome». As suas palavras
reflectem a alegria do espírito, difícil de exprimir: «O meu espírito
exulta em Deus, meu Salvador». Porque «a verdade profunda, tanto a
respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens,
manifesta-se-nos... em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a
plenitude de toda a revelação». [90] No arroubo do seu coração, Maria confessa ter-se encontrado no próprio âmago desta plenitude
de Cristo. Está consciente de que em si está a cumprir-se a promessa
feita aos pais e, em primeiro lugar, em favor de «Abraão e da sua
descendência para sempre»: que em si, portanto, como mãe de Cristo,
converge toda a economia salvífica, na qual «de geração em geração» se manifesta Aquele que, como Deus da Aliança, «se recorda da sua misericórdia».
37. A Igreja, que desde o início modela a sua caminhada terrena pela
caminhada da Mãe de Deus, repete constantemente, em continuidade com
ela, as palavras do Magnificat. Nas profundidades da fé da Virgem
Maria na Anunciação e na Visitação, a Igreja vai haurir a verdade
acerca do Deus da Aliança; acerca de Deus que é Todo-poderoso e faz
«grandes coisas» no homem: «santo é o seu nome». No Magnificat,
ela vê debelado nas suas raízes o pecado do princípio da história
terrena do homem e da mulher: o pecado da incredulidade e da «pouca fé»
em Deus. Contra a «suspeita» que o «pai da mentira» fez nascer no
coração de Eva, a primeira mulher, Maria, a quem a tradição costuma
chamar «nova Eva» [91] e verdadeira «mãe dos vivos», [92] proclama com vigor a não ofuscada verdade acerca de Deus: o Deus santo e omnipotente, que desde o princípio é a fonte de todas as dádivas,
aquele que «fez grandes coisas» nela, Maria, assim como em todo o
universo. Deus, ao criar, dá a existência a todas as realidades; e ao
criar o homem, dá-lhe a dignidade da imagem e da semelhança consigo, de
modo singular em relação a todas as demais criaturas terrestres. E não
se detendo na sua vontade de doação, não obstante o pecado do homem, Deus dá-se no Filho: «Amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito» (Jo
3, 16) Maria é a primeira testemunha desta verdade maravilhosa, que se
actuará plenamente mediante «as obras e os ensinamentos» (cf. Act 1, 1) do seu Filho e, definitivamente, mediante a sua Cruz e Ressurreição.
A Igreja, que, embora entre «tentações e tribulações», não cessa de repetir com Maria as palavras do Magnificat, «escora-se» na força da verdade sobre Deus, proclamada então com tão extraordinária simplicidade; e, ao mesmo tempo, deseja iluminar com esta mesma verdade acerca de Deus
os difíceis e por vezes intrincados caminhos da existência terrena dos
homens. A caminhada da Igreja, portanto, já quase no final do Segundo
Milénio cristão, implica um empenhamento renovado na própria missão.
Segundo Aquele que disse de si: «(Deus) mandou-me a anunciar aos pobres a boa nova» (cf. Lc 4, 18), a Igreja tem procurado, de geração em geração, e procura ainda hoje cumprir esta mesma missão.
O seu amor preferencial pelos pobres acha-se admiravelmente inscrito no Magnificat
de Maria. O Deus da Aliança, cantado pela Virgem de Nazaré, com
exultação do seu espírito, é ao mesmo tempo aquele que «derruba os
poderosos dos tronos e exalta os humildes... enche de bens os famintos e
despede os ricos de mãos vazias ... dispersa os soberbos... e conserva a
sua misericórdia para com aqueles que o temem».
Maria está profundamente impregnada do espírito dos «pobres de Javé»
que, segundo a oração dos Salmos, esperavam de Deus a própria salvação,
pondo nele toda a sua confiança (Sl 25; 31; 35; e 55). Ela, na verdade, proclama o advento do mistério da salvação, a vinda do «Messias dos pobres» (cf. Is 11, 4; 61, 1). Haurindo certeza do coração de Maria, da profundidade da sua fé, expressa nas palavras do Magnificat, a Igreja renova em si, sempre para melhor, essa própria certeza de que não se pode separar a verdade a respeito de Deus que salva, de Deus que é fonte de toda a dádiva, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e pelos humildes, amor que, depois de cantado no Magnificat, se encontra expresso nas palavras e nas obras de Jesus.
A Igreja, portanto, está bem cônscia ― e na nossa época esta sua
certeza reforça-se de modo particular ― não só de que não podem ser
separados estes dois elementos da mensagem contida no Magnificat,
mas também de que deve outrossim ser salvaguardada cuidadosamente a
importância que têm os «pobres» e a «opção em favor dos pobres» na
palavra de Deus vivo. Trata-se de temas e problemas organicamente
conexos com o sentido cristão da liberdade e da libertação. Maria, «totalmente dependente de Deus e toda ela orientada para Ele, ao lado do seu Filho, é a ícone mais perfeita da liberdade e da libertação
da humanidade e do cosmos. É para Maria que a Igreja, da qual ela é Mãe
e modelo, deve olhar, a fim de compreender na sua integralidade o
sentido da própria missão». [93]
Documento completo> https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031987_redemptoris-mater.html