sábado, 18 de maio de 2024

JOÃO PAULO II - ANO MARIANO - CARTA ENCÍCLICA REDEMPTORIS MATER DO SUMO PONTÍFICE

 

 «Ó Santa Mãe do Redentor, porta do Céu sempre aberta, estrela do mar, socorrei o vosso povo, que cai e anela por erguer-se. Vós que gerastes, com grande admiração de todas as criaturas, o vosso santo Genitor»!

CARTA ENCÍCLICA
REDEMPTORIS MATER
DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II
SOBRE A BEM-AVENTURADA
 VIRGEM MARIA
 NA VIDA DA IGREJA
 QUE ESTÁ A CAMINHO

 

Veneráveis Irmãos,
caríssimos Filhos e Filhas:
saúde e Bênção Apostólica!

INTRODUÇÃO

1. A MÃE DO REDENTOR tem um lugar bem preciso no plano da salvação, porque, «ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido duma mulher, nascido sob a Lei, a fim de resgatar os que estavam sujeitos à Lei e para que nós recebêssemos a adopção de filhos. E porque vós sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: «Abbá! Pai!»» (Gál 4, 4-6).

Com estas palavras do Apóstolo São Paulo, que são referidas pelo Concílio Vaticano II no início da sua exposição sobre a Bem-aventurada Virgem Maria,[1] desejo também eu começar a minha reflexão sobre o significado que Maria tem no mistério de Cristo e sobre a sua presença activa e exemplar na vida da Igreja. Trata-se, de facto, de palavras que celebram conjuntamente o amor do Pai, a missão do Filho, o dom do Espírito Santo, a mulher da qual nasceu o Redentor e a nossa filiação divina, no mistério da «plenitude dos tempos». [2]

Esta «plenitude» indica o momento, fixado desde toda a eternidade, em que o Pai enviou o seu Filho, «para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). Ela designa o momento abençoado em que «o Verbo, que estava junto de Deus, ... se fez carne e habitou entre nós» (Jo 1, 1. 14), fazendo-se nosso irmão. Esta «plenitude» marca o momento em que o Espírito Santo que já tinha infundido a plenitude de graça em Maria de Nazaré, plasmou no seu seio virginal a natureza humana de Cristo. A mesma «plenitude» denota aquele momento, em que, pelo ingresso do eterno no tempo, do divino no humano, o próprio tempo foi redimido e, tendo sido preenchido pelo mistério de Cristo, se torna definitivamente «tempo de salvação». Ela assinala, ainda, o início arcano da caminhada da Igreja. Na Liturgia, de facto, a Igreja saúda Maria de Nazaré como seu início, [3] por isso mesmo que já vê projectar-se, no evento da Conceição imaculada, como que antecipada no seu membro mais nobre, a graça salvadora da Páscoa; e, sobretudo, porque no acontecimento da Incarnação se encontram indissoluvelmente ligados Cristo e Maria Santíssima: Aquele que é o seu Senhor e a sua Cabeça e Aquela que, ao pronunciar o primeiro «fiat» (faça-se) da Nova Aliança, prefigura a condição da mesma Igreja de esposa e de mãe.

2. Confortada pela presença de Cristo (cf. Mt 28, 20), a Igreja caminha no tempo, no sentido da consumação dos séculos e procede para o encontro com o Senhor que vem. Mas nesta caminhada ― desejo realçá-lo desde já ― a Igreja procede seguindo as pegadas do itinerário percorrido pela Virgem Maria, a qual «avançou na peregrinação da fé, mantendo fielmente a união com o seu Filho até à Cruz».[4]

Refiro estas palavras tão densas, evocando assim a Constituição Lumen gentium, o documento que, no último capítulo, apresenta uma síntese vigorosa da fé e da doutrina da Igreja sobre o tema da Mãe de Cristo, venerada como Mãe amantíssima e como seu modelo na fé, na esperança e na caridade.

Poucos anos depois do Concílio, o meu grande Predecessor Paulo VI houve por bem voltar a falar da Virgem Santíssima, expondo primeiramente na Carta Encíclica Christi Matri e, em seguida, nas Exortações Apostólicas Signum magnum e Marialis cultus, [5] os fundamentos e os critérios daquela veneração singular que a Mãe de Cristo recebe na Igreja, assim como as formas de devoção mariana ― litúrgicas, populares e privadas ― em correspondência com o espírito da fé.

3. A circunstância que agora me impele também a mim a retomar este assunto é a perspectiva do Ano Dois Mil, que já está próximo, no qual o Jubileu bimilenário do nascimento de Jesus Cristo, nos leva a volver o olhar simultaneamente para a sua Mãe. Nestes anos mais recentes, foram aparecendo diversos alvitres que apontavam a oportunidade de fazer anteceder a comemoração bimilenária de um outro Jubileu análogo, dedicado à celebração do nascimento de Maria Santíssima.

Na realidade, se não é possível estabelecer um momento cronológico preciso para aí fixar o nascimento de Maria, tem sido constante da parte da Igreja a consciência de que Maria apareceu antes de Cristo no horizonte da história da salvação.[6] É um facto que, ao aproximar-se definitivamente a «plenitude dos tempos», isto é, o advento salvífico do Emanuel, Aquela que desde a eternidade estava destinada a ser sua Mãe já existia sobre a terra. Esta sua «precedência», em relação à vinda de Cristo, tem anualmente os seus reflexos na liturgia do Advento. Por conseguinte, se os anos que nos vão aproximando do final do Segundo Milénio depois de Cristo e do início do Terceiro forem cotejados com aquela antiga expectativa histórica do Salvador, torna-se perfeitamente compreensível que neste período desejemos voltar-nos de modo especial para Aquela que, na «noite» da expectativa do Advento, começou a resplandecer como uma verdadeira «estrela da manhã» (Stella matutina). Com efeito, assim como esta estrela, conjuntamente à «aurora», precede o nascer do sol, assim também Maria, desde a sua Conceição imaculada, precedeu a vinda do Salvador, o nascer do «sol da justiça» na história do género humano. [7]

A sua presença no meio do povo de Israel ― tão discreta que passava quase despercebida aos olhos dos contemporâneos ― brilhava bem clara diante do Eterno, que tinha associado esta ignorada «Filha de Sião» (cf. Sof 3, 14; Zac 2, 14) ao plano salvífico que compreendia toda a história da humanidade. Com razão, pois, no final deste Milénio, nós cristãos, que sabemos ser o plano providencial da Santíssima Trindade a realidade central da revelação e da fé, sentimos a necessidade de pôr em relevo a presença singular da Mãe de Cristo na história, especialmente no decorrer deste último período de tempo que precede o Ano Dois Mil.

4. Para isso nos prepara já o Concílio Vaticano II, ao apresentar no seu magistério a Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja. Com efeito, se «o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo Incarnado» ― como proclama o mesmo Concílio [8] ― então é necessário aplicar este princípio, de modo muito particular, àquela excepcional «filha da estirpe humana», àquela «mulher» extraordinária que se tornou Mãe de Cristo. Só no mistério de Cristo «se esclarece» plenamente o seu mistério. Foi assim, de resto, que a Igreja, desde o princípio, procurou fazer a sua leitura: o mistério da Incarnação permitiu-lhe entender e esclarecer cada vez melhor o mistério da Mãe do Verbo Incarnado. Neste aprofundamento teve uma importância decisiva o Concílio de Éfeso (a. 431), durante o qual, com grande alegria dos cristãos, a verdade sobre a maternidade divina de Maria foi confirmada solenemente como verdade de fé da Igreja. Maria é a Mãe de Deus ( = Theotókos), uma vez que, por obra do Espírito Santo, concebeu no seu seio virginal e deu ao mundo Jesus Cristo, o Filho de Deus consubstancial ao Pai. [9] «O Filho de Deus ... ao nascer da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós ...»,[10] fez-se homem. Deste modo, pois, mediante o mistério de Cristo, resplandece plenamente no horizonte da fé da Igreja o mistério da sua Mãe. O dogma da maternidade divina de Maria, por sua vez, foi para o Concílio de Éfeso e é para a Igreja como que uma chancela no dogma da Incarnação, em que o Verbo assume realmente, sem a anular, a natureza humana na unidade da sua Pessoa.

5. O Concílio Vaticano II, apresentando Maria no mistério de Cristo, encontra desse modo o caminho para aprofundar também o conhecimento do mistério da Igreja. Maria, de facto, como Mãe de Cristo, está unida de modo especial com a Igreja, «que o Senhor constituiu como seu corpo». [11] O texto conciliar põe bem próximas uma da outra, significativamente, esta verdade sobre a Igreja como corpo de Cristo (segundo o ensino das Cartas de São Paulo) e a verdade de que o Filho de Deus «por obra do Espírito Santo nasceu da Virgem Maria». A realidade da Incarnação encontra como que um prolongamento no mistério da Igreja ― corpo de Cristo. E não se pode pensar na mesma realidade da Incarnação sem fazer referência a Maria ― Mãe do Verbo Incarnado.

Nas reflexões que passo a apresentar, porém, quero referir-me principalmente àquela «peregrinação da fé», na qual «a Bem-aventurada Virgem Maria avançou», conservando fielmente a união com Cristo. [12] Deste modo, aquele dúplice vínculo, que une a Mãe de Deus com Cristo e com a Igreja, reveste-se de um significado histórico. E não se trata aqui simplesmente da história da Virgem Maria, do seu itinerário pessoal de fé e da «melhor parte» que ela tem no mistério da salvação; trata-se também da história de todo o Povo de Deus, de todos aqueles que tomam parte na mesma peregrinação da fé.

É isto o que exprime o Concílio, ao declarar, numa outra passagem, que a Virgem Maria «precedeu», tornando-se «a figura da Igreja, na ordem da fé, da caridade e da perfeita união com Cristo».[13] Este seu «preceder», como figura ou modelo, refere-se ao próprio mistério íntimo da Igreja, a qual cumpre a própria missão salvífica unindo em si ― à semelhança de Maria ― as qualidades de mãe e de virgem. É virgem que «guarda fidelidade total e pura ao seu esposo» e «torna-se, também ela própria, mãe ... pois gera para vida nova e imortal os filhos concebidos por acção do Espírito Santo e nascidos de Deus».[14]

6. Tudo isto se realiza num grande processo histórico e, por assim dizer, «numa caminhada». «A peregrinação da fé» indica a história interior, que é como quem diz a história das almas. Mas esta é também a história dos homens, sujeitos nesta terra à condição transitória e situados nas dimensões históricas. Nas reflexões que seguem quereria, juntamente convosco, concentrar-me primeiro que tudo na sua fase presente, que aliás de per si não pertence ainda à história; e, contudo, incessantemente já a vai plasmando, também no sentido de história da salvação. Aqui abre-se um espaço amplo, no interior do qual a Bem-aventurada Virgem Maria continua a «preceder» o Povo de Deus. A sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para a Igreja, para as pessoas singulares e para as comunidades, para os povos e para as nações e, em certo sentido, para toda a humanidade. É verdadeiramente difícil abarcar e medir o seu alcance.

O Concílio sublinha que a Mãe de Deus já é a realização escatológica da Igreja: «na Santíssima Virgem ela já atingiu aquela perfeição sem mancha nem ruga que lhe é própria (cf. Ef 5, 27)» ― e, simultaneamente, que «os fiéis ainda têm de envidar esforços para debelar o pecado e crescer na santidade; e, por isso, eles levantam os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a comunidade dos eleitos» [15] A peregrinação da fé é algo que já não pertence à Genetriz do Filho de Deus: glorificada nos céus ao lado do próprio Filho, a sua união com o mesmo Deus já transpôs o limiar entre a fé e a visão «face-a-face» (1 Cor 13, 12). Ao mesmo tempo, porém, nesta realização escatológica, Maria não cessa de ser a «estrela do mar» (Maris Stella)[16] para todos aqueles que ainda percorrem o caminho da fé. Se levantam os olhos para Ela nos diversos lugares onde se desenrola a sua existência terrena, fazem-no porque Ela «deu à luz o Filho, que Deus estabeleceu como primogénito entre muitos irmãos» (Rom 8, 29) [17] e também porque «Ela coopera com amor de mãe» para «a regeneração e educação» destes irmãos e irmãs.[18]

 

PRIMEIRA PARTE
MARIA NO MISTÉRIO DE CRISTO

1. Cheia de graça

7. «Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual no alto dos céus, nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais em Cristo» (Ef 1, 3). Estas palavras da Carta aos Efésios revelam o eterno desígnio de Deus Pai, o seu plano de salvação do homem em Cristo. É um plano universal, que concerne todos os homens criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gén 1, 26). Todos eles, assim como «no princípio» estão compreendidos na obra criadora de Deus, assim também estão eternamente compreendidos no plano divino da salvação, que se deve revelar cabalmente na «plenitude dos tempos», com a vinda de Cristo. Com efeito, «n'Ele», aquele Deus, que é «Pai de nosso Senhor Jesus Cristo» ― são as palavras que vêm a seguir na mesma Carta ― «nos elegeu antes da criação do mundo, para sermos santos e imaculados aos seus olhos. Por puro amor Ele nos predestinou a sermos adoptados por Ele como filhos, por intermédio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, para louvor da magnificência da sua graça, pela qual nos tornou agradáveis em seu amado Filho. N'Ele, mediante o seu sangue, temos a redenção, a remissão dos pecados segundo as riquezas da sua graça» (Ef 1, 4-7).

O plano divino da salvação, que nos foi revelado plenamente com a vinda de Cristo, é eterno. Ele é também ― segundo o ensino contido na mesma Carta e noutras Cartas paulinas (cf. Col 1, 12-14; Rom 3, 24; Gál 3, 13; 2 Cor 5, 18-29) ― algo que está eternamente ligado a Cristo. Ele compreende em si todos os homens; mas reserva um lugar singular à «mulher» que foi a Mãe d'Aquele ao qual o Pai confiou a obra da salvação. [19] Como explana o Concílio Vaticano II, «Maria encontra-se já profeticamente delineada na promessa da vitória sobre a serpente, feita aos primeiros pais caídos no pecado», segundo o Livro do Génesis (cf. 3, 15). «Ela é, igualmente, a Virgem que conceberá e dará à luz um Filho, cujo nome será Emanuel» segundo as palavras de Isaías (cf. 7, 14). [20]Deste modo, o Antigo Testamento prepara aquela «plenitude dos tempos», quando Deus haveria de enviar «o seu Filho, nascido duma mulher ..., para que nós recebêssemos a adopção como filhos». A vinda ao mundo do Filho de Deus e o acontecimento narrado nos primeiros capítulos dos Evangelhos segundo São Lucas e segundo São Mateus.

8. Maria é introduzida no mistério de Cristo definitivamente mediante aquele acontecimento que foi a Anunciação do Anjo. Esta deu-se em Nazaré, em circunstâncias bem precisas da história de Israel, o povo que foi o primeiro destinatário das promessas de Deus. O mensageiro divino diz à Virgem: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor é contigo» (Lc 1, 28). Maria «perturbou-se e interrogava-se a si própria sobre o que significaria aquela saudação» (Lc 1, 29): que sentido teriam todas aquelas palavras extraordinárias, em particular, a expressão «cheia de graça» (kecharitoméne). [21]

Se quisermos meditar juntamente com Maria em tais palavras e, especialmente, na expressão «cheia de graça», podemos encontrar uma significativa correspondência precisamente na passagem acima citada da Carta aos Efésios. E se, depois do anúncio do mensageiro celeste, a Virgem de Nazaré é chamada também a «bendita entre as mulheres» (cf. Lc 1, 42), isso explica-se por causa daquela bênção com que «Deus Pai» nos cumulou «no alto dos céus, em Cristo». É uma bênção espiritual, que se refere a todos os homens e traz em si mesma a plenitude e a universalidade (»toda a sorte de bênçãos»), tal como brota do amor que, no Espírito Santo, une ao Pai o Filho consubstancial. Ao mesmo tempo, trata-se de uma bênção derramada por obra de Jesus Cristo na história humana até ao fim: sobre todos os homens. Mas esta bênção refere-se a Maria em medida especial e excepcional: ela, de facto, foi saudada por Isabel como «a bendita entre as mulheres».

O motivo desta dupla saudação, portanto, está no facto de se ter manifestado na alma desta «filha de Sião», em certo sentido, toda a «magnificência da graça», daquela graça com que «o Pai ... nos tornou agradáveis em seu amado Filho». O mensageiro, efectivamente, saúda Maria como «cheia de graça»; e chama-lhe assim, como se este fosse o seu verdadeiro nome. Não chama a sua interlocutora com o nome que lhe é próprio segundo o registo terreno: «Miryam» ( = Maria); mas sim com este nome novo: «cheia de graça». E o que significa este nome? Por que é que o Arcanjo chama desse modo à Virgem de Nazaré?

Na linguagem da Bíblia «graça» significa um dom especial, que, segundo o Novo Testamento, tem a sua fonte na vida trinitária do próprio Deus, de Deus que é amor (cf. 1 Jo 4, 8). É fruto deste amor a «eleição» ― aquela eleição de que fala a Carta aos Efésios. Da parte de Deus esta «escolha» é a eterna vontade de salvar o homem, mediante a participação na sua própria vida divina (cf. 2 Pdr 1, 4) em Cristo: é a salvação pela participação na vida sobrenatural. O efeito deste dom eterno, desta graça de eleição do homem por parte de Deus, é como que um gérmen de santidade, ou como que uma nascente a jorrar na alma do homem, qual dom do próprio Deus que, mediante a graça, vivifica e santifica os eleitos. Desta forma se verifica, isto é, se torna realidade aquela «bênção» do homem «com toda a sorte de bênçãos espirituais», aquele «ser seus filhos adoptivos ... em Cristo», ou seja, n'Aquele que é desde toda a eternidade o «Filho muito amado» do Pai.

Quando lemos que o mensageiro diz a Maria «cheia de graça», o contexto evangélico, no qual confluem revelações e promessas antigas, permite-nos entender que aqui se trata de uma «bênção» singular entre todas as «bênçãos espirituais em Cristo». No mistério de Cristo, Maria está presente já «antes da criação do mundo», como aquela a quem o Pai «escolheu» para Mãe do seu Filho na Incarnação ― e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste «Filho muito amado» desde toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda «a magnificência da graça». Ao mesmo tempo, porém, ela é e permanece perfeitamente aberta para este «dom do Alto» (cf. Tg 1, 17) Como ensina o Concílio, Maria «é a primeira entre os humildes e os pobres do Senhor, que confiadamente esperam e recebem d'Ele a salvação». [22]

9. A saudação e o nome «cheia de graça» dizem-nos tudo isto; mas, no contexto do anúncio do Anjo, referem-se em primeiro lugar à eleição de Maria como Mãe do Filho de Deus. Todavia, a plenitude de graça indica ao mesmo tempo toda a profusão de dons sobrenaturais com que Maria é beneficiada em relação com o facto de ter sido escolhida e destinada para ser Mãe de Cristo. Se esta eleição é fundamental para a realização dos desígnios salvíficos de Deus, a respeito da humanidade, e se a escolha eterna em Cristo e a destinação para a dignidade de filhos adoptivos se referem a todos os homens, então a eleição de Maria é absolutamente excepcional e única. Daqui deriva também a singularidade e unicidade do seu lugar no mistério de Cristo.

O mensageiro divino diz-lhe: «Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo» (Lc 1, 30-32). E quando a Virgem, perturbada por esta saudação extraordinária, pergunta: «Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?», recebe do Anjo a confirmação e a explicação das palavras anteriores. Gabriel diz-lhe: «Virá sobre ti o Espírito Santo e a potência do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).

A Anunciação, portanto, é a revelação do mistério da Incarnação exactamente no início da sua realização na terra. A doação salvífica que Deus faz de si mesmo e da sua vida, de alguma maneira a toda a criação e, directamente, ao homem, atinge no mistério da Incarnação um dos seus pontos culminantes. Isso constitui, de facto, um vértice de todas as doações de graça na história do homem e do cosmos. Maria é a «cheia de graça», porque a Incarnação do Verbo, a união hipostática do Filho de Deus com a natureza humana, se realiza e se consuma precisamente nela. Como afirma o Concílio, Maria é «Mãe do Filho de Deus e, por isso, filha predilecta do Pai e templo do Espírito Santo; e, por este insigne dom de graça, leva vantagem a todas as demais criaturas do céu e da terra». [23]

10. A Carta aos Efésios, falando da «magnificência da graça» pela qual «Deus Pai ... nos tornou agradáveis em seu amado Filho», acrescenta: «N'Ele temos a redenção pelo seu sangue» (Ef 1, 7). Segundo a doutrina formulada em documentos solenes da Igreja, esta «magnificência da graça» manifestou-se na Mãe de Deus pelo facto de ela ter sido «redimida de um modo mais sublime». [24] Em virtude da riqueza da graça do amado Filho e por motivo dos merecimentos redentores d'Aquele que haveria de tornar-se seu Filho, Maria foi preservada da herança do pecado original. [25] Deste modo, logo desde o primeiro instante da sua concepção, ou seja da sua existência, ela pertence a Cristo, participa da graça salvífica e santificante e daquele amor que tem o seu início no «amado Filho», no Filho do eterno Pai que, mediante a Incarnação, se tornou o seu próprio Filho. Sendo assim, por obra do Espírito Santo, na ordem da graça, ou seja, da participação da natureza di vina, Maria recebe a vida d'Aquele, ao qual ela própria, na ordem da geração terrena, deu a vida como mãe. A Liturgia não hesita em chamá-la «genetriz do seu Genitor» [26] e em saudá-la com as palavras que Dante Alighieri põe na boca de São Bernardo: «filha do teu Filho» [27]. E, uma vez que Maria recebe esta «vida nova» numa plenitude correspondente ao amor do Filho para com a Mãe, e por conseguinte à dignidade da maternidade divina, o Anjo na Anunciação chama-lhe «cheia de graça».

11. No desígnio salvífico da Santíssima Trindade o mistério da Incarnação constitui o cumprimento superabundante da promessa feita por Deus aos homens, depois do pecado original, depois daquele primeiro pecado cujos efeitos fazem sentir o seu peso sobre toda a história do homem na terra (cf. Gén 3, 15). E eis que vem ao mundo um Filho, a «descendência da mulher», que vencerá o mal do pecado nas suas próprias raízes: «esmagará a cabeça» da serpente. Como resulta das palavras do Proto-Evangelho, a vitória do Filho da mulher não se verificará sem uma árdua luta, que deve atravessar toda a história humana. «A inimizade», anunciada no princípio, é confirmada no Apocalipse, o livro das realidades últimas da Igreja e do mundo, onde volta a aparecer o sinal de uma «mulher», desta vez «vestida de sol» (Apoc 12, 1).

Maria, Mãe do Verbo Incarnado, está colocada no próprio centro dessa «inimizade», dessa luta que acompanha o evoluir da história da humanidade sobre a terra e a própria história da salvação. Neste seu lugar, ela, que faz parte dos «humildes e pobres do Senhor», apresenta em si, como nenhum outro dentre os seres humanos, aquela «magnificência de graça» com que o Pai nos agraciou no seu amado Filho; e esta graça constitui a extraordinária grandeza e beleza de todo o seu ser. Maria permanece, assim, diante de Deus e também diante de toda a humanidade, como o sinal imutável e inviolável da eleição por parte do mesmo Deus, de que fala a Carta paulina: «em Cristo nos elegeu antes da criação do mundo ... e nos predestinou para sermos seus filhos adoptivos» (Ef 1, 4. 5). Esta eleição é mais forte do que toda a experiência do mal e do pecado, do que toda aquela «inimizade» pela qual está marcada toda a história do homem. Nesta história, Maria permanece um sinal de segura esperança.

2. Feliz daquela que acreditou

12. Logo depois de ter narrado a Anunciação, o Evangelista São Lucas faz-nos de guia, seguindo os passos da Virgem em direcção a «uma cidade de Judá» (Lc 1, 39). Segundo os estudiosos, esta cidade devia ser a «Ain-Karim» de hoje, situada entre as montanhas, não distante de Jerusalém. Maria dirigiu-se para lá «apressadamente», para visitar Isabel, sua parente. O motivo desta visita há-de ser procurado também no facto de Gabriel, durante a Anunciação, ter nomeado de maneira significativa Isabel, que em idade avançada tinha concebido do marido Zacarias um filho, pelo poder de Deus: «Isabel, tua parente, concebeu um filho, na sua velhice; e está já no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, porque nada é impossível a Deus» (Lc 1, 36-37). O mensageiro divino tinha feito recurso ao evento, que se realizara em Isabel, para responder à pergunta de Maria: «Como se realizará isso, pois eu não conheço homem?» (Lc 1, 34). Sim, será possível exactamente pelo «poder do Altíssimo», como e ainda mais do que no caso de Isabel.

Maria dirige-se, pois, impelida pela caridade, a casa da sua parente. Quando aí entrou, Isabel, ao responder à sua saudação, tendo sentido o menino estremecer de alegria no próprio seio, «cheia do Espírito Santo», saúda por sua vez Maria em alta voz: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» (cf. Lc 1, 40-42). Esta proclamação e aclamação de Isabel deveria vir a entrar na Ave Maria, como continuação da saudação do Anjo, tornando-se assim uma das orações mais frequentes da Igreja. Mas são ainda mais significativas as palavras de Isabel, na pergunta que se segue: «E donde me é dada a dita que venha ter comigo a mãe do meu Senhor?» (Lc 1, 43). Isabel dá testemunho acerca de Maria: reconhece e proclama que diante de si está a Mãe do Senhor, a Mãe do Messias. Neste testemunho participa também o filho que Isabel traz no seio: «estremeceu de alegria o menino no meu seio» (Lc 1, 44). O menino é o futuro João Baptista, que, nas margens do Jordão, indicará em Jesus o Messias.

Todas as palavras, nesta saudação de Isabel, são densas de significado; no entanto, parece ser algo de importância fundamental o que ela diz no final: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45). [28] Estas palavras podem ser postas ao lado do apelativo «cheia de graça» da saudação do Anjo. Em ambos os textos se revela um conteúdo mariológico essencial, isto é, a verdade acerca de Maria, cuja presença se tornou real no mistério de Cristo, precisamente porque ela «acreditou». A plenitude de graça, anunciada pelo Anjo, significa o dom de Deus mesmo; a fé de Maria, proclamada por Isabel aquando da Visitação, mostra como a Virgem de Nazaré tinha correspondido a este dom.

13. «A Deus que revela é devida «a obediência da fé» (Rom 16, 26; cf. Rom 1, 5; 2 Cor 10, 5-6), pela qual o homem se entrega total e livremente a Deus», como ensina o Concílio. [29] Exactamente esta descrição da fé teve em Maria uma actuação perfeita. O momento «decisivo» foi a Anunciação; e as palavras de Isabel ― «feliz daquela que acreditou» ― referem-se em primeiro lugar precisamente a esse momento. [30]

Na Anunciação, de facto, Maria entregou-se a Deus completamente, manifestando «a obediência da fé» Àquele que lhe falava, mediante o seu mensageiro, prestando-lhe o «obséquio pleno da inteligência e da vontade». [31] Ela respondeu, pois, com todo o seu «eu» humano e feminino. Nesta resposta de fé estava contida uma cooperação perfeita com a «prévia e concomitante ajuda da graça divina» e uma disponibilidade perfeita à acção do Espírito Santo, o qual «aperfeiçoa continuamente a fé mediante os seus dons». [32]

A palavra de Deus vivo, anunciada pelo Anjo a Maria, referia-se a ela própria: «Eis que conceberás e darás à luz um filho» (Lc 1, 31). Acolhendo este anúncio, Maria devia tornar-se a «Mãe do Senhor» e realizar-se-ia nela o mistério divino da Incarnação: «O Pai das misericórdias quis que a aceitação por parte da que Ele predestinara para mãe, precedesse a Incarnação». [33] E Maria dá esse consenso, depois de ter ouvido todas as palavras do mensageiro. Diz: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Este fiat de Maria ― «faça-se em mim» ― decidiu, da parte humana, do cumprimento do mistério divino. Existe uma consonância plena com as palavras do Filho que, segundo a Carta aos Hebreus, ao vir a este mundo, diz ao Pai: «Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas formaste-me um corpo... Eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade» (Hebr 10, 5-7). O mistério da Incarnação realizou-se quando Maria pronunciou o seu «fiat»: «Faça-se em mim segundo a tua palavra», tornando possível, pelo que a ela competia no desígnio divino, a aceitação do oferecimento do seu Filho.

Maria pronunciou este «fiat» mediante a fé. Foi mediante a fé que ela «se entregou a Deus» sem reservas e «se consagrou totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra do seu Filho». [34] E este Filho ― como ensinam os Padres da Igreja ― concebeu-o na mente antes de o conceber no seio: precisamente mediante a fé! [35] Com justeza, portanto, Isabel louva Maria: «Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor». Essas coisas já se tinham cumprido: Maria de Nazaré apresenta-se no limiar da casa de Isabel e de Zacarias como mãe do Filho de Deus. É essa a descoberta letificante de Isabel: «A mãe do meu Senhor vem ter comigo!».

14. Por conseguinte, também a fé de Maria pode ser comparada com a de Abraão, a quem o Apóstolo chama «nosso pai na fé» (cf. Rom 4, 12). Na economia salvífica da Revelação divina, a fé de Abraão constitui o início da Antiga Aliança; a fé de Maria, na Anunciação, dá início à Nova Aliança. Assim como Abraão, «esperando contra toda a esperança, acreditou que haveria de se tornar pai de muitos povos» (cf. Rom 4, 18 ), também Maria, no momento da Anunciação, depois de ter declarado a sua condição de virgem (»Como será isto, se eu não conheço homem?»), acreditou que pelo poder do Altíssimo, por obra do Espírito Santo, se tornaria a mãe do Filho de Deus segundo a revelação do Anjo: «Por isso mesmo o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).

Entretanto, as palavras de Isabel: «Feliz daquela que acreditou» não se aplicam apenas àquele momento particular da Anunciação. Esta representa, sem dúvida, o momento culminante da fé de Maria na expectação de Cristo, mas é também o ponto de partida, no qual se inicia todo o seu «itinerário para Deus», toda a sua caminhada de fé. E será ao longo deste caminho, que a «obediência» por ela professada à palavra da revelação divina irá ser actuada, de modo eminente e verdadeiramente heróico ou, melhor dito, com um heroísmo de fé cada vez maior. E esta «obediência da fé» da parte de Maria, durante toda a sua caminhada, terá surpreendentes analogias com a fé de Abraão. Do mesmo modo que o patriarca do Povo de Deus, também Maria, ao longo do caminho do seu fiat filial e materno, «esperando contra toda a esperança, acreditou». Especialmente ao longo de algumas fases deste seu caminhar, a bênção concedida «àquela que acreditou» tornar-se-á manifesta com particular evidência. Acreditar quer dizer «abandonar-se» à própria verdade da palavra de Deus vivo, sabendo e reconhecendo humildemente «quanto são insondáveis os seus desígnios e imperscrutáveis as suas vias» (Rom 11, 33). Maria, que pela eterna vontade do Altíssimo veio a encontrar-se, por assim dizer, no próprio centro daquelas «imperscrutáveis vias» e daqueles «insondáveis desígnios» de Deus, conforma-se a eles na obscuridade da fé, aceitando plenamente e com o coração aberto tudo aquilo que é disposição dos desígnios divinos.

15. Na Anunciação, quando Maria ouve falar do Filho de que deve tornar-se genetriz e ao qual «porá o nome de Jesus» (= Salvador), fica também a conhecer que «o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai David», que ele «reinará sobre a casa de Jacob eternamente e o seu reinado não terá fim» (Lc 1, 32-33). Era neste sentido que se orientava toda a esperança de Israel. O Messias prometido devia ser «grande»; e também o mensageiro celeste anuncia que «será grande»: grande, quer pelo nome de Filho do Altíssimo, quer pelo facto de assumir a herança de David. Há-de, portanto, ser rei, há-de reinar «sobre a casa de Jacob». Maria tinha crescido no meio desta expectativa do seu povo: estaria ela em condições de captar, no momento da Anunciação, qual o sentido essencial que podiam ter as palavras do Anjo, e como devia ser entendido aquele «reino», que «não terá fim»?

Se bem que, mediante a fé, ela possa ter-se sentido naquele instante mãe do «Messias-rei», contudo respondeu: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). Desde o primeiro momento, Maria professou sobretudo «a obediência da fé», abandonando-se àquele sentido que dava às palavras da Anunciação Aquele do qual elas provinham: o próprio Deus.

16. No caminho da «obediência da fé», ainda, Maria, um pouco mais tarde, ouve outras palavras: aquelas que foram pronunciadas por Simeão, no templo de Jerusalém. Estava-se já no quadragésimo dia depois do nascimento de Jesus, quando Maria e José, segundo a prescrição da Lei de Moisés, «levaram o menino a Jerusalém, para o oferecer ao Senhor» (Lc 2, 22). O nascimento verificara-se em condições de extrema pobreza. Com efeito, sabemos através de São Lucas que, por ocasião do recenseamento da população ordenado pelas autoridades romanas, Maria se dirigiu com José a Belém; e não tendo encontrado «lugar na hospedaria», deu à luz o seu Filho num estábulo e «reclinou-o numa manjedoura» (cf. Lc 2, 7).

Um homem justo e piedoso, de nome Simeão, aparece naquele momento dos inícios do «itinerário» da fé de Maria. As suas palavras, sugeridas pelo Espírito Santo (cf. Lc 2, 25-27), confirmam a verdade da Anunciação. Lemos, efectivamente, que ele «tomou nos seus braços» o menino, ao qual ― segundo a palavra do Anjo ― deram o nome de Jesus» (cf. Lc 2, 21). Aquilo que Simeão diz está conforme com o significado deste nome, que quer dizer Salvador: «Deus é a salvação». Dirigindo-se ao Senhor, ele exprime-se assim: «Os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste em favor de todos os povos; luz para iluminar as nações e glória de Israel, teu povo» (Lc 2, 30-32). Nessa mesma altura, porém, Simeão dirige-se a Maria com as seguintes palavras: «Ele é destinado a ser ocasião de queda e de ressurgimento para muitos em Israel e a ser um sinal de contradição... a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações»; e acrescenta, com referência directa a Maria: «E tu mesma terás a alma trespassada por uma espada» (Lc 2, 34-35). As palavras de Simeão colocam sob uma luz nova o anúncio que Maria tinha ouvido do Anjo: Jesus é o Salvador, é «luz para iluminar» os homens. Não foi isso que, de algum modo, se manifestou na noite de Natal, quando os pastores vieram ao estábulo? (cf. Lc 2, 8-20). Não foi isso o que se manifestou também e ainda mais, aquando da vinda dos Magos do Oriente? (cf. Mt 2, 1-12 ) . Ao mesmo tempo, porém, logo desde o início da sua vida, o Filho de Maria, e com ele a sua Mãe, experimentarão em si mesmos a verdade daquelas outras palavras de Simeão: «Sinal de contradição» (Lc 2, 34). Aquilo que Simeão diz apresenta-se como um segundo anúncio a Maria, uma vez que indica a dimensão histórica concreta em que o Filho realizará a sua missão, ou seja, na incompreensão e na dor. Se este outro anúncio confirma, por um lado, a sua fé no cumprimento das promessas divinas da salvação, por outro, também lhe revela que ela terá que viver a sua obediência de fé no sofrimento, ao lado do Salvador que sofre, e que a sua maternidade será obscura e marcada pela dor. Com efeito, depois da visita dos Magos, depois de eles lhe terem rendido homenagem (»prostrados o adoraram») e depois da oferta dos dons (cf. Mt 2, 11), sucede que Maria, com o menino, tem de fugir para o Egipto sob a proteção desvelada de José, porque Herodes estava a «procurar o menino para o matar» (cf. Mt 2, 13). E teriam de ficar no Egipto até à morte de Herodes (cf. Mt 2, 15).

17. Depois da morte de Herodes, quando se dá o retorno da sagrada família a Nazaré, inicia-se o longo período da vida oculta. Aquela que «acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1, 45) vive no dia a dia o conteúdo dessas palavras. O Filho a quem deu o nome de Jesus está quotidianamente ao seu lado; assim, no contacto com ele, usa certamente este nome, o que não devia, aliás, causar estranheza a ninguém, tratando-se de um nome que era usual, desde havia muito tempo, em Israel. Maria sabe, no entanto, que aquele a quem foi posto o nome de Jesus, foi chamado pelo Anjo «Filho do Altíssimo» (cf. Lc 1, 32). Maria sabe que o concebeu e deu à luz «sem ter conhecido homem», por obra do Espírito Santo, com o poder do Altíssimo que sobre ela estendeu a sua sombra (cf. Lc 1, 35), tal como nos tempos de Moisés e dos antepassados a nuvem velava a presença de Deus (cf. Ex 24, 16; 40, 34-35; 1 Rs 8, 10-12). Maria sabe, portanto, que o Filho, por ela dado à luz virginalmente, é precisamente aquele «Santo», «o Filho de Deus» de que lhe havia falado o Anjo.

Durante os anos da vida oculta de Jesus na casa de Nazaré, também a vida de Maria «está escondida com Cristo em Deus» (cf. Col 3, 3) mediante a fé. A fé, efectivamente, é um contacto com o mistério de Deus. Maria está constante e quotidianamente em contacto com o mistério inefável de Deus que se fêz homem, mistério que supera tudo aquilo que foi revelado na Antiga Aliança. Desde o momento da Anunciação, a mente da Virgem-Mãe foi introduzida na «novidade» radical de autorevelação de Deus e tornada cônscia do mistério. Ela é a primeira daqueles «pequeninos» dos quais um dia Jesus dirá: «Pai, ... escondeste estas coisas aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25). Na verdade, «ninguém conhece o Filho senão o Pai» (Mt 11, 27). Como poderá então Maria «conhecer o Filho»? Certamente, não como o Pai o conhece; e no entanto, ela é a primeira entre aqueles aos quais o Pai «o quis revelar» (cf. Mt 11, 26-27; 1 Cor 2, 11). Se, porém, desde o momento da Anunciação lhe foi revelado o Filho, que apenas o Pai conhece completamente, como Aquele que o gera no «hoje» eterno (cf. Sl 2, 7), então Maria, a Mãe, está em contacto com a verdade do seu Filho somente na fé e mediante a fé! Portanto, é feliz porque «acreditou»; e acredita dia a dia, no meio de todas as provações e contrariedades do período da infância de Jesus e, depois, durante os anos da sua vida oculta em Nazaré, quando ele «lhes era submisso» (Lc 2, 51): submisso a Maria e também a José, porque José, diante dos homens, fazia para ele as vezes de pai; e era por isso que o Filho de Maria era tido pela gente do lugar como «o filho do carpinteiro» (Mt 13, 55).

A Mãe, por conseguinte, lembrada de tudo o que lhe havia sido dito acerca deste seu Filho, na Anunciação e nos acontecimentos sucessivos, é portadora em si mesma da «novidade» radical da fé: o início da Nova Aliança. Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de «noite da fé» ― para usar as palavras de São João da Cruz ― como que um «véu» através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério. [36]Foi deste modo, efectivamente, que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé, à medida em que Jesus «crescia em sabedoria ... e graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2, 52). Manifestava-se cada vez mais aos olhos dos homens a predilecção que Deus tinha por ele. A primeira entre estas criaturas humanas admitidas à descoberta de Cristo foi Maria que, com Ele e com José, vivia na mesma casa em Nazaré.

Todavia, na ocasião em que o reencontraram no templo, à pergunta da Mãe: «Por que procedeste assim connosco?», Jesus ― então menino de doze anos ― respondeu: «Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?»; e o Evangelista acrescenta: «Mas eles (José e Maria) não entenderam as suas palavras» (Lc 2, 48-50). Portanto, Jesus tinha a consciência de que «só o Pai conhece o Filho» (cf. Mt 11, 27); tanto assim, que até aquela a quem tinha sido revelado mais profundamente o mistério da sua filiação divina, a sua Mãe, vivia na intimidade com este mistério somente mediante a fé! Encontrando-se constantemente ao lado do Filho, sob o mesmo tecto, e «conservando fielmente a união com o Filho» Ela «avançava na peregrinação da fé», como acentua o Concílio. [37] E assim sucedeu também durante a vida pública de Cristo (cf. Mc 3, 21-35) pelo que, dia a dia, se cumpriram nela as palavras abençoantes pronunciadas por Isabel, aquando da Visitação: «Feliz daquela que acreditou».

18. Estas palavras abençoantes atingem a plenitude do seu significado, quando Maria está aos pés da Cruz do seu Filho (cf. Jo 19, 25). O Concílio afirma que isso «aconteceu não sem um desígnio divino»: «padecendo acerbamente com o seu Unigénito, associando-se com ânimo maternal ao seu sacrifício e consentindo com amor na imolação da vítima que ela havia gerado», foi deste modo que Maria «conservou fielmente a união com seu Filho até à Cruz», [38] a união mediante a fé: a mesma fé com a qual tinha acolhido a revelação do Anjo no momento da Anunciação. Nesse momento ela tinha também ouvido dizer: «será grande ..., o Senhor Deus dar-lhe-á o trono de seu pai David..., reinará eternamente na casa de Jacob e o seu reinado não terá fim» (Lc 1, 32-33).

E agora, estando ali aos pés da Cruz, Maria é testemunha, humanamente falando, do desmentido cabal dessas palavras. O seu Filho agoniza, suspenso naquele madeiro como um condenado. «Desprezado e rejeitado pelos homens; homem das dores...; era menosprezado e nenhum caso fazíamos dele» ... como que destruído (cf. Is 53, 3-5 ). Quão grande e quanto foi heróica então a «obediência da fé» demonstrada por Maria diante dos «insondáveis desígnios» de Deus! Como ela se «abandonou nas mãos de Deus» sem reservas, «prestando o pleno obséquio da inteligência e da vontade» [39] Àquele cujas «vias são imperscrutáveis!» (cf. Rom 11, 33). E, ao mesmo tempo, quanto se mostra potente a acção da graça na sua alma e quanto é penetrante a influência do Espírito Santo, da sua luz e da sua virtude!

Mediante essa sua fé, Maria está perfeitamente unida a Cristo no seu despojamento. Com efeito, «Jesus Cristo, ... subsistindo na natureza divina, não julgou o ser igual a Deus, um bem a que não devesse nunca renunciar; mas despojou-se a si mesmo tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens»: precisamente sobre o Gólgota «humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de Cruz» (cf. Flp 2, 5-8). E aos pés da Cruz, Maria participa mediante a fé no mistério desconcertante desse despojamento. Isso constitui, talvez, a mais profunda «kénose» da fé na história da humanidade. Mediante a fé, a Mãe participa na morte do Filho, na sua morte redentora; mas, bem diferente da fé dos discípulos, que se davam à fuga, a fé de Maria era muito mais esclarecida. Sobre o Gólgota, Jesus confirmou definitivamente, por meio da Cruz, ser «o sinal de contradição» predito por Simeão. Ao mesmo tempo, cumpriram-se aí as palavras dirigidas pelo mesmo ancião a Maria: «E tu mesma terás a alma trespassada por uma espada». [40]

19. Sim, verdadeiramente, «feliz daquela que acreditou»! Estas palavras, pronunciadas por Isabel já depois da Anunciação, parecem ressoar aqui, aos pés da Cruz, com suprema eloquência; e a força que elas encerram, torna-se penetrante. Da Cruz ou, por assim dizer, do próprio coração do mistério da Redenção, se esparge a irradiação e se dilata a perspectiva daquelas palavras abençoadoras da sua fé. Elas remontam «até ao princípio» e, como participação no sacrifício de Cristo, novo Adão, tornam-se, em certo sentido, o contrabalanço da desobediência e da incredulidade presentes no pecado dos nossos primeiros pais. Assim o ensinam os Padres da Igreja, especialmente Santo Ireneu, citado na Constituição Lumen gentium: «O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a Virgem Eva atou, com a sua incredulidade, a Virgem Maria desatou-o com a sua fé». [41] À luz desta comparação com Eva, os mesmos Padres ― como recorda ainda o Concílio ― chamam a Maria «mãe dos vivos» e afirmam muitas vezes: «A morte veio por Eva, a vida por meio de Maria». [42]

Com razão, portanto, podemos encontrar na expressão «feliz daquela que acreditou» como que uma chave que nos abre o acesso à realidade íntima de Maria: daquela que foi saudada pelo Anjo como «cheia da graça». Se como «cheia de graça» ela esteve eternamente presente no mistério de Cristo, agora, mediante a fé, torna-se dele participante em toda a extensão do seu itinerário terreno: «avançou na peregrinação da fé» e, ao mesmo tempo, de maneira discreta, mas directa e eficazmente, tornava presente aos homens o mesmo mistério de Cristo. E ainda continua a fazê-lo. E mediante o mistério de Cristo, também ela está presente entre os homens. Deste modo, através do mistério do Filho, esclarece-se também o mistério da Mãe.

3. Eis a tua mãe

20. O Evangelho de São Lucas regista o momento em que «uma mulher ergueu a voz do meio da multidão e disse», dirigindo-se a Jesus: «Ditoso o ventre que te trouxe e os seios a que foste amamentado!» (Lc 11, 27). Estas palavras constituíam um louvor para Maria, como mãe de Jesus segundo a carne. A Mãe de Jesus talvez não fosse conhecida pessoalmente por essa mulher; de facto, quando Jesus iniciou a sua actividade messiânica, Maria não o acompanhava, mas continuava a viver em Nazaré. Dir-se-ia que as palavras dessa mulher desconhecida a fizeram sair, de algum modo, do seu escondimento.

Através de tais palavras lampejou no meio da multidão, ao menos por um instante, o evangelho da infância de Jesus. É o evangelho em que Maria está presente como a mãe que concebe Jesus no seu seio, o dá à luz e maternamente o amamenta: a mãe-nutriz, a que alude aquela mulher do povo. Graças a esta maternidade, Jesus ― Filho do Altíssimo (cf. Lc 1, 32 ) ― é um verdadeiro filho do homem. É «carne», como todos os homens. é «o Verbo (que) se fez carne» (cf. Jo 1, 14). É carne e sangue de Maria! [43]

Mas, às palavras abençoantes proferidas por aquela mulher em relação à sua genetriz segundo a carne, Jesus responde de modo significativo: «Ditosos antes os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 11, 28). Ele quer desviar a atenção da maternidade entendida só como um vínculo do sangue, para a orientar no sentido daqueles vínculos misteriosos do espírito, que se formam com o prestar ouvidos e com a observância da palavra de Deus.

A mesma transferência, na esfera dos valores espirituais, delineia-se ainda mais claramente numa outra resposta de Jesus, relatada por todos os Sinópticos. Quando foi anunciado ao mesmo Jesus que a sua «mãe e os seus irmãos estavam lá fora e desejavam vê-lo», ele respondeu: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática» (cf. Lc 8, 20-21). Disse isto «percorrendo com o olhar os que estavam sentados à volta dele», como lemos em São Marcos (3, 34) ou, segundo São Mateus (12, 49), «indicando com a mão os seus discípulos».

Estas expressões parecem situar-se na linha daquilo que Jesus ― então menino de doze anos ― respondeu a Maria e José, quando foi reencontrado, depois de três dias, no templo de Jerusalém.

Agora, uma vez que Jesus já tinha saído de Nazaré para dar início à sua vida pública por toda a Palestina, estava doravante completa e exclusivamente «ocupado nas coisas do Pai» (cf. Lc 2, 49). Ocupava-se em anunciar o Reino: o «Reino de Deus» e as «coisas do Pai», que dão também uma dimensão nova e um sentido novo a tudo aquilo que é humano; e, por conseguinte, a todos os laços humanos, em relação com os fins e as funções estabelecidos para cada um dos homens. Com esta nova dimensão, também um laço, como o da «fraternidade» significa algo de diverso da «fraternidade segundo a carne», que provém da origem comum dos mesmos pais. E até mesmo a «maternidade», vista na dimensão do Reino de Deus, na irradiação da paternidade do próprio Deus, alcança um outro sentido. Com as palavras referidas por São Lucas, Jesus ensina precisamente este novo sentido da maternidade.

Ter-se-á afastado, por causa disto, daquela que foi sua mãe, a sua genetriz segundo a carne? Desejará, porventura, deixá-la na sombra do escondimento, que ela própria escolheu? Embora assim possa parecer, se nos ativermos só ao som material daquelas palavras, devemos observar, no entanto, que a maternidade nova e diversa, de que Jesus fala aos seus discípulos, refere-se precisamente a Maria e de modo especialíssimo. Não é, acaso, Maria a primeira dentre «aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática»? E portanto, não se referirão sobretudo a ela aquelas palavras abençoantes pronunciadas por Jesus, em resposta às palavras da mulher anónima? Maria é digna, sem dúvida alguma, de tais palavras de bênção, pelo facto de se ter tornado Mãe de Jesus segundo a carne (»Ditoso o ventre que te trouxe e os seios a que foste amamentado»); mas é digna delas também e sobretudo porque, logo desde o momento da Anunciação, acolheu a palavra de Deus e porque nela acreditou e sempre foi obediente a Deus; ela, com efeito, «guardava» a palavra, meditava-a «no seu coração» (cf. Lc 1, 38-45; 2, 19. 51) e cumpria-a com toda a sua vida. Podemos, portanto, afirmar que as palavras de bem-aventurança pronunciadas por Jesus não se contrapõem, apesar das aparências, àquelas outras que foram proferidas pela mulher desconhecida; mas antes, que com elas se coadunam na pessoa desta Mãe-Virgem, que a si mesma se designou simplesmente como «serva do Senhor» (Lc 1, 38). Se é verdade que «todas as gerações a chamarão bem-aventurada» (cf. Lc 1, 48), pode dizer-se que aquela mulher anónima foi a primeira a confirmar, sem disso ter consciência, aquele versículo profético do Magnificat de Maria e a dar início ao Magnificat dos séculos.

Se Maria, mediante a fé, se tornou a genetriz do Filho que lhe foi dado pelo Pai com o poder do Espírito Santo, conservando íntegra a sua virgindade, com a mesma fé ela descobriu e acolheu a outra dimensão da maternidade, revelada por Jesus no decorrer da sua missão messiânica. Pode dizer-se que esta dimensão da maternidade era possuída por Maria desde o início, isto é, desde o momento da concepção e do nascimento do Filho. Desde então ela foi «aquela que acreditou». Mas, à medida que se ia esclarecendo aos seus olhos e no seu espírito a missão do Filho, ela própria, como Mãe, se ia abrindo cada vez mais para aquela «novidade» da maternidade, que devia constituir a sua «parte» ao lado do Filho. Não declarara ela, desde o princípio: «Eis a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra»? (Lc 1, 38). Maria continuava, pois, mediante a fé, a ouvir e a meditar aquela palavra, na qual se tornava cada vez mais transparente, de um modo «que excede todo conhecimento» (Ef 3, 19), a autorevelação de Deus vivo. E assim, Maria Mãe tornava-se, em certo sentido, a primeira «discípula» do seu Filho, a primeira a quem ele parecia dizer: «Segue-me», mesmo antes de dirigir este chamamento aos Apóstolos ou a quaisquer outros (cf. Jo 1, 43).

21. Sob este ponto de vista, é particularmente eloquente aquele texto do Evangelho de São João, que nos apresenta Maria nas bodas de Caná. Maria aparece aí como Mãe de Jesus, que estava nos princípios da sua vida pública: «Celebravam-se umas bodas em Caná de Galileia; e encontrava-se lá a mãe de Jesus. Foi também convidado para as bodas Jesus, com os seus discípulos (Jo 2, 1-2). Do texto resultaria que Jesus e os seus discípulos foram convidados juntamente com Maria, quiçá por motivo da presença dela nessa festa: o Filho parece ter sido convidado em atenção à Mãe. É conhecida a sequência dos factos relacionados com esse convite: aquele «início dos milagres» feitos por Jesus ― a água transformada em vinho ― que leva o Evangelista a dizer: Jesus «manifestou a sua glória e os seus discípulos acreditaram nele» (Jo 2, 11).

Maria está presente em Caná de Galileia como Mãe de Jesus e contribui, de modo significativo, para aquele «início dos milagres», que revelam o poder messiânico do seu Filho. «Ora, vindo a faltar o vinho, a Mãe de Jesus disse-lhe: «não têm mais vinho». E Jesus respondeu-lhe: «Que importa isso, a mim e a ti, ó mulher? Ainda não chegou a minha hora»» (Jo 2, 3-4). No Evangelho de São João aquela «hora» significa o momento estabelecido pelo Pai, em que o Filho levará a cabo a sua obra e há-de ser glorificado (cf. Jo 7, 30; 8, 20; 12, 23. 27; 13, 1; 17, 1; 19, 27). Muito embora a resposta de Jesus à sua Mãe tenha as aparências de uma recusa (sobretudo se, mais do que na interrogação, se reparar naquela afirmação firme: «Ainda não chegou a minha hora»), mesmo assim Maria dirige-se aos que serviam e diz-lhes: «Fazei aquilo que ele vos disser» (Jo 2, 5). Então Jesus ordena a esses servos que encham as talhas de água; e a água transforma-se em vinho, melhor do que aquele que fora servido anteriormente aos convidados do banquete nupcial.

Que entendimento profundo terá havido entre Jesus e a sua Mãe? Como se poderá explorar o mistério da sua íntima união espiritual? De qualquer modo, o facto é eloquente. Naquele evento é bem certo que já se delineia bastante claramente a nova dimensão, o sentido novo da maternidade de Maria. Esta tem um significado que não está encerrado exclusivamente nas palavras de Jesus e nos diversos episódios referidos pelos Sinópticos (Lc 11, 27-28 e Lc 8, 19-21; Mt 12, 46-50; Mc 3, 31-35). Nestes textos Jesus tem o intuito, sobretudo, de contrapor a maternidade que resulta do próprio facto do nascimento, àquilo que esta «maternidade» (assim como a «fraternidade») deve ser na dimensão do Reino de Deus, na irradiação salvífica da paternidade do mesmo Deus. No texto de São João, ao contrário, a partir da descrição dos factos de Caná, esboça-se aquilo em que se manifesta concretamente esta maternidade nova, segundo o espírito e não somente segundo a carne, ou seja, a solicitude de Maria pelos homens, o seu ir ao encontro deles, na vasta gama das suas carências e necessidades. Em Caná da Galileia torna-se patente só um aspecto concreto da indigência humana, pequeno aparentemente e de pouca importância (»Não têm mais vinho»). Mas é algo que tem um valor simbólico: aquele ir ao encontro das necessidades do homem significa, ao mesmo tempo, introduzi-las no âmbito da missão messiânica e do poder salvífico de Cristo. Dá-se, portanto, uma mediação: Maria põe-se de permeio entre o seu Filho e os homens na realidade das suas privações, das suas indigências e dos seus sofrimentos. Põe-se de «permeio», isto é, faz de mediadora, não como uma estranha, mas na sua posição de mãe, consciente de que como tal pode ― ou antes, «tem o direito de» ― fazer presente ao Filho as necessidades dos homens. A sua mediação, portanto, tem um carácter de intercessão: Maria «intercede» pelos homens. E não é tudo: como Mãe deseja também que se manifeste o poder messiânico do Filho, ou seja, o seu poder salvífico que se destina a socorrer as desventuras humanas, a libertar o homem do mal que, sob diversas formas e em diversas proporções, faz sentir o peso na sua vida. Precisamente como o profeta Isaías tinha predito acerca do Messias, no famoso texto a que Jesus se refere na presença dos seus conterrâneos de Nazaré: «Para anunciar aos pobres a boa-nova me enviou, para proclamar aos prisioneiros a libertação e aos cegos a vista ...» (cf. Lc 4, 18).

Outro elemento essencial desta função maternal de Maria pode ser captado nas palavras dirigidas aos que serviam à mesa: «Fazei aquilo que ele vos disser». A Mãe de Cristo apresenta-se diante dos homens como porta-voz da vontade do Filho, como quem indica aquelas exigências que devem ser satisfeitas, para que possa manifestar-se o poder salvífico do Messias. Em Caná, graças à intercessão de Maria e à obediência dos servos, Jesus dá início à «sua hora». Em Caná, Maria aparece como quem acredita em Jesus: a sua fé provoca da parte dele o primeiro «milagre» e contribui para suscitar a fé dos discípulos.

22. Podemos dizer, por conseguinte, que nesta página do Evangelho de São João encontramos como que um primeiro assomo da verdade acerca da solicitude maternal de Maria. Esta verdade teve a sua expressão também no magistério do recente Concílio. É importante notar que a função maternal de Maria é por ele ilustrada na sua relação com a mediação de Cristo. Com efeito, podemos aí ler: «A função maternal de Maria para com os homens, de modo algum obscurece ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia», porque «um só é o mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus» (1 Tim 2, 5). Esta função maternal de Maria promana, segundo o beneplácito de Deus, «da superabundância dos méritos de Cristo, funda-se na sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia». [44] É precisamente neste sentido que o evento de Caná da Galileia nos oferece como que um preanúncio da mediação de Maria, toda ela orientada para Cristo e propendente para a revelação do seu poder salvífico.

Do texto joanino transparece que se trata de uma mediação materna. Como proclama o Concílio: Maria «foi para nós mãe na ordem da graça». Esta maternidade na ordem da graça resultou da sua própria maternidade divina: porque sendo ela, por disposição da divina Providência, mãe-nutriz do Redentor, foi associada à sua obra, de maneira única, como «amiga generosa» e humilde «serva do Senhor», que «cooperou ... na obra do Salvador com a obediência e com a sua fé, esperança e caridade ardente, para restaurar nas almas a vida sobrenatural». [45] «E esta maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção... até à consumação perpétua de todos os eleitos». [46]

23. Se esta passagem do Evangelho de São João, sobre os factos de Caná, apresenta a maternidade desvelada de Maria no início da actividade messiânica de Cristo, há uma outra passagem do mesmo Evangelho que confirma esta maternidade na economia salvífica da graça no seu momento culminante, isto é, quando se realiza o sacrifício de Cristo na Cruz, o seu mistério pascal. A descrição de São João é concisa: «Estavam junto à Cruz de Jesus sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopá, e Maria de Magdala. Jesus, então, vendo a mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à mãe: «Mulher, eis o teu filho!». Depois, disse ao discípulo: «Eis a tua mãe!». E a partir daquele momento, o discípulo levou-a para a sua casa» (Jo 19-, 25-27).

Neste episódio reconhece-se, sem dúvida, uma expressão do desvelo singular do Filho para com a Mãe, que Ele ia deixar no meio de tanto sofrimento. Todavia, quanto ao sentido deste desvelo, o «testamento da Cruz» de Cristo diz algo mais. Jesus põe em relevo um vínculo novo entre Mãe e Filho, do qual confirma solenemente toda a verdade e realidade. Pode dizer-se que, se a maternidade de Maria em relação aos homens já tinha aflorado e se tinha delineado em precedência, agora é claramente precisada e estabelecida: ela emerge da maturação definitiva do mistério pascal do Redentor. A Mãe de Cristo, encontrando-se na irradiação directa deste mistério que abrange o homem ― todos e cada um dos homens ― é dada ao homem ― a todos e cada um dos homens ― como mãe. Este homem aos pés da Cruz é João, «o discípulo que ele amava». [47] Porém não é ele como um só homem. A Tradição e o Concílio não hesitam em chamar a Maria «Mãe de Cristo e Mãe dos homens»: ela está, efectivamente, associada na descendência de Adão com todos os homens..., mais ainda, é verdadeiramente mãe dos membros (de Cristo)..., porque cooperou com o seu amor para o nascimento dos fiéis na Igreja». [48]

Esta «nova maternidade de Maria», portanto, gerada pela fé, é fruto do «novo» amor, que nela amadureceu definitivamente aos pés da Cruz, mediante a sua participação no amor redentor do Filho.

24. Encontramo-nos assim no próprio centro do cumprimento da promessa, contida no Proto-Evangelho: a «descendência da mulher esmagará a cabeça da serpente» (cf. Gén 3, 15). Jesus Cristo, de facto, com a sua morte redentora vence o mal do pecado e da morte nas suas próprias raízes. É significativo que, dirigindo-se à Mãe do alto da Cruz, Ele lhe chame «mulher», ao dizer-lhe: «Mulher, eis o teu filho». Com o mesmo termo, de resto, se tinha dirigido também a ela em Caná (cf. Jo 2, 4). Como duvidar de que, especialmente agora, no alto do Gólgota, esta frase atinja em profundidade no mistério de Maria, pondo em realce o «lugar» singular que ela tem em toda a economia da salvação? Como ensina o Concílio, com Maria, «excelsa Filha de Sião, passada a longa espera da promessa, completam-se os tempos e instaura-se uma nova economia, quando o Filho de Deus assumiu dela a natureza humana, para libertar o homem do pecado, por meio dos mistérios da sua carne». [49]

As palavras que Jesus pronuncia do alto da Cruz significam que a maternidade da sua Genetriz tem uma «nova» continuação na Igreja e mediante a Igreja, simbolizada e representada por São João. Deste modo, aquela que, como «a cheia de graça», foi introduzida no mistério de Cristo para ser sua Mãe, isto é, a Santa Genetriz de Deus, por meio da Igreja permanece naquele mistério como «a mulher» indicada pelo Livro do Génesis (cf. 3, 15), no princípio, e pelo Apocalipse (cf. 12, 1), no final da história da salvação. Segundo o eterno desígnio da Providência, a maternidade divina de Maria deve estender-se à Igreja, como estão a indicar certas afirmações da Tradição, segundo as quais a maternidade de Maria para com a Igreja é o reflexo e o prolongamento da sua maternidade para com o Filho de Deus. [50]

O próprio momento do nascimento da Igreja e da sua plena manifestação ao mundo, segundo o Concílio, já deixa entrever esta continuidade da maternidade de Maria: «Tendo sido do agrado de Deus não manifestar solenemente o mistério da salvação humana, antes de ter derramado o Espírito prometido por Cristo, vemos os Apóstolos, antes do dia do Pentecostes, «assíduos e concordes na oração, com algumas mulheres e com Maria a Mãe de Jesus e com os irmãos dele» (Act 1, 14), implorando também Maria, com suas orações, o dom daquele Espírito que já tinha estendido sobre ela a sua sombra, na Anunciação». [51]

Sendo assim, na economia redentora da graça, actuada sob a acção do Espírito Santo, existe uma correspondência singular entre o momento da Incarnação do Verbo e o momento do nascimento da Igreja. E a pessoa que une estes dois momentos é Maria: Maria em Nazaré e Maria no Cenáculo de Jerusalém. Em ambos os casos, a sua presença discreta, mas essencial, indica a via do «nascimento do Espírito». Assim, aquela que está presente no mistério de Cristo como Mãe, torna-se ― por vontade do Filho e por obra do Espírito Santo ― presente no mistério da Igreja. E também na Igreja continua a ser uma presença materna, como indicam as palavras pronunciadas na Cruz: «Mulher, eis o teu Filho»; «Eis a tua Mãe».

 

 O sentido do Ano Mariano

48. O vínculo especial da humanidade com esta Mãe foi precisamente o que me levou a proclamar na Igreja, no período que antecede a conclusão do Segundo Milénio do nascimento de Cristo, um Ano Mariano. Uma iniciativa semelhante a esta já se verificou no passado, quando o Papa Pio XII proclamou o ano de 1954 como Ano Mariano, para dar realce à excepcional santidade da Mãe de Cristo, expressa nos mistérios da sua Imaculada Conceição (definida exactamente um século antes) e da sua Assunção ao Céu. [141]

Seguindo a linha do Concílio Vaticano II, anima-me o desejo de pôr em relevo a presença especial da Mãe de Deus no mistério de Cristo e da sua Igreja. Esta é uma dimensão fundamental que dimana da Mariologia do Concílio, de cujo encerramento já nos separam mais de vinte anos. O Sínodo extraordinário dos Bispos, que se realizou em 1985, exortou a todos a seguirem fielmente o magistério e as indicações do Concílio. Pode dizer-se que em ambos ― . no Concílio e no Sínodo ― está contido aquilo que o Espírito Santo deseja «dizer à Igreja» (cf. Apoc 2, 7.17.29; 3, 6.13.22) na fase presente da história.

Neste contexto, o Ano Mariano deverá promover também uma leitura nova e aprofundada daquilo que o Concílio disse sobre a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja, a que se referem as considerações contidas na presente Encíclica. Com esta perspectiva, trata-se não só da doutrina da fé, mas também da vida de fé; e, portanto, da autêntica «espiritualidade mariana», vista à luz da Tradição e, especialmente, daquela espiritualidade a que nos exorta o Concílio. [142] Além disso, a espiritualidade mariana, assim como a devoção correspondente, tem uma riquíssima fonte na experiência histórica das pessoas e das diversas comunidades cristãs, que vivem no seio dos vários povos e nações, sobre toda a face da terra. A este propósito, é-me grato recordar, dentre as muitas testemunhas e mestres de tal espiritualidade, a figura de São Luís Maria Grignion de Montfort, [143] o qual propõe aos cristãos a consagração a Cristo pelas mãos de Maria, como meio eficaz para viverem fielmente os compromissos baptismais. E registo ainda aqui, de bom grado, que também nos nossos dias não faltam novas manifestações desta espiritualidade e devoção.

Há, portanto, pontos de referência seguros para os quais olhar e aos quais ater-se, no contexto deste Ano Mariano.

49. A celebração do mesmo Ano Mariano terá início na Solenidade do Pentecostes no dia 7 de Junho próximo. Trata-se, efectivamente, não apenas de recordar que Maria «precedeu» o ingresso de Cristo Senhor na história da humanidade, mas também de salientar, à luz de Maria, que, desde que se realizou o mistério da Incarnação, a história da humanidade entrou «na plenitude dos tempos» e que a Igreja é o sinal desta plenitude. Como Povo de Deus, a Igreja vai fazendo, mediante a fé, a peregrinação no sentido da eternidade no meio de todos os povos e nações, peregrinação que começou no dia do Pentecostes. A Mãe de Cristo, que esteve presente no princípio do «tempo da Igreja» quando, durante os dias de espera do Espírito Santo, era assídua na oração no meio dos Apóstolos e dos discípulos do seu Filho, «precede» constantemente a Igreja nesta sua caminhada através da história da humanidade. Ela é também aquela que, precisamente como serva do Senhor, coopera sem cessar na obra da salvação realizada por Cristo, seu Filho.

Assim, por meio deste Ano Mariano, a Igreja é chamada não só a recordar tudo o que no seu passado testemunha a especial cooperação materna da Mãe de Deus na obra da salvação em Cristo Senhor, mas também a preparar para o futuro, na parte que lhe toca, os caminhos desta cooperação salvífica, dado que, com o final do Segundo Milénio cristão, se abre como que uma nova perspectiva.

50. Como já tivemos ocasião de recordar, também entre os irmãos desunidos muitos honram e celebram a Mãe do Senhor, especialmente entre os Orientais. É uma luz mariana projectada sobre o Ecumenismo. Mas desejaria aqui recordar ainda, em particular, que durante o Ano Mariano ocorrerá o Milénio do Baptismo de São Vladimiro, Grão-Príncipe de Kiev (a. 988), que deu início ao Cristianismo nos territórios da «Rus'» de então e, em seguida, em todos os territórios da Europa oriental; e que, por esta via, mediante a obra de evangelização, o Cristianismo se estendeu também para além da Europa, até aos territórios setentrionais do Continente asiático. Desejaríamos, portanto, especialmente durante este Ano, unir-nos na oração com todos aqueles que celebram o Milénio desse Baptismo, ortodoxos e católicos, renovando e confirmando com o Concílio, a vivência de sentimentos de alegria e consolação, pelo facto de que «os Orientais ... acorrem a venerar a Mãe de Deus, sempre Virgem, com fervor ardente e ânimo devoto». [144] Embora experimentemos ainda os efeitos dolorosos da separação, que se deu alguns decénios depois (a. 1054), podemos dizer que diante da Mãe de Cristo nos sentimos verdadeiros irmãos e irmãs no âmbito daquele Povo messiânico chamado a ser uma única família de Deus sobre a face da terra, como já tive ocasião de anunciar no passado dia de Ano Novo: «Desejamos reconfirmar esta herança universal de todos os filhos e filhas desta terra». [145]

Ao anunciar o Ano de Maria, eu precisava ainda que o seu encerramento será no ano seguinte, na solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, querendo realçar «o sinal grandioso no céu» de que fala o Apocalipse. Deste modo, queremos também pôr em prática a exortação do Concílio, que olha para Maria como um «sinal de esperança segura e de consolação para o Povo de Deus peregrino». E essa exortação foi expressa pelo Concílio com as seguintes palavras: «Dirijam todos os fiéis súplicas instantes à Mãe de Deus e Mãe dos homens, para que ela, que assistiu com suas orações aos começos da Igreja, também agora, no Céu, exaltada acima de todos os bem-aventurados e dos anjos, interceda junto de seu Filho, na comunhão de todos os santos, até que todas as famílias dos povos, quer as que ostentam o nome cristão, quer as que ignoram ainda o seu Salvador, se reúnam felizmente, em paz e concórdia, no único Povo de Deus, para glória da santíssima e indivisa Trindade». [146] 

3. O «Magnificat» da Igreja que está a caminho

35. Na fase actual da sua caminhada, a Igreja procura, pois, reencontrar a união de todos os que professam a própria fé em Cristo, para manifestar a obediência ao seu Senhor que orou por esta unidade, antes do seu iminente sacrifício. Ela vai avançando na «sua peregrinação... e anunciando a paixão e a morte do Senhor até que ele venha». [87] «Prosseguindo entre as tentações e tribulações da caminhada, a Igreja é apoiada pela força da graça de Deus, que lhe foi prometida pelo Senhor, para que não se afaste da perfeita fidelidade por causa da fraqueza humana, mas permaneça digna esposa do seu Senhor e, com o auxílio do Espírito Santo, não cesse de se renovar a si própria até que, pela Cruz, chegue á luz que não conhece ocaso». [88]

A Virgem Maria está constantemente presente nesta caminhada de fé do Povo de Deus em direcção à luz. Demonstra-o de modo especial o cântico do «Magnificat», que, tendo jorrado da profundidade da fé de Maria na Visitação, não cessa de vibrar no coração da Igreja ao longo dos séculos. Prova-o a sua recitação quotidiana na liturgia das Vésperas e em muitos outros momentos de devoção, quer pessoal, quer comunitária.


«A minha alma glorifica o Senhor,
e o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador,
porque olhou para a humildade da sua serva.
De hoje em diante todas as gerações
hão-de me chamar bem-aventurada.
Porque fez em mim grandes coisas o Todo-poderoso. E santo é o seu nome:
a sua misericórdia estende-se de geração em geração sobre aqueles que o temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos com os desígnios
que eles conceberam;
derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes
encheu de bens os famintos
e aos ricos despediu-os de mãos vazias.
Socorreu Israel, seu servo,
recordando-se da sua misericórdia,
como tinha prometido aos nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre» (Lc 1, 46-55). 

36. Quando Isabel saudou a jovem parente, que acabava de chegar de Nazaré, Maria respondeu com o Magnificat. Na sua saudação, Isabel tinha chamado a Maria: primeiro, «bendita» por causa do «fruto do seu ventre»; e depois, «feliz» (bem-aventurada) por causa da sua fé (cf. Lc 1, 42. 45 ). Estas duas palavras abençoantes referiam-se directamente ao momento da Anunciação. Agora, na Visitação, quando Isabel, na sua saudação, dá um testemunho daquele momento culminante, a fé de Maria enriquece-se de uma nova consciência e de uma nova expressão. Aquilo que no momento da Anunciação permanecia escondido na profundidade da «obediência da fé» dir-se-ia que agora daí irrompe, como uma chama clara e vivificante do espírito. As palavras usadas por Maria, no limiar da casa de Isabel, constituem uma profissão inspirada desta sua fé, na qual se exprime a resposta à palavra da revelação, com a elevação religiosa e poética de todo o seu ser no sentido de Deus. Nessas palavras sublimes, que são ao mesmo tempo muito simples e totalmente inspiradas nos textos sagrados do povo de Israel, [89] transparece a experiência pessoal de Maria, o êxtase do seu coração. Resplandece nelas um clarão do mistério de Deus, a glória da sua inefável santidade, o amor eterno que, como um dom irrevogável, entra na história do homem.

Maria é a primeira a participar nesta nova revelação de Deus e, mediante ela, nesta nova «autodoação» de Deus. Por isso proclama: «Grandes coisas fez em mim ... e santo é o seu nome». As suas palavras reflectem a alegria do espírito, difícil de exprimir: «O meu espírito exulta em Deus, meu Salvador». Porque «a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos... em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação». [90] No arroubo do seu coração, Maria confessa ter-se encontrado no próprio âmago desta plenitude de Cristo. Está consciente de que em si está a cumprir-se a promessa feita aos pais e, em primeiro lugar, em favor de «Abraão e da sua descendência para sempre»: que em si, portanto, como mãe de Cristo, converge toda a economia salvífica, na qual «de geração em geração» se manifesta Aquele que, como Deus da Aliança, «se recorda da sua misericórdia».

37. A Igreja, que desde o início modela a sua caminhada terrena pela caminhada da Mãe de Deus, repete constantemente, em continuidade com ela, as palavras do Magnificat. Nas profundidades da fé da Virgem Maria na Anunciação e na Visitação, a Igreja vai haurir a verdade acerca do Deus da Aliança; acerca de Deus que é Todo-poderoso e faz «grandes coisas» no homem: «santo é o seu nome». No Magnificat, ela vê debelado nas suas raízes o pecado do princípio da história terrena do homem e da mulher: o pecado da incredulidade e da «pouca fé» em Deus. Contra a «suspeita» que o «pai da mentira» fez nascer no coração de Eva, a primeira mulher, Maria, a quem a tradição costuma chamar «nova Eva» [91] e verdadeira «mãe dos vivos», [92] proclama com vigor a não ofuscada verdade acerca de Deus: o Deus santo e omnipotente, que desde o princípio é a fonte de todas as dádivas, aquele que «fez grandes coisas» nela, Maria, assim como em todo o universo. Deus, ao criar, dá a existência a todas as realidades; e ao criar o homem, dá-lhe a dignidade da imagem e da semelhança consigo, de modo singular em relação a todas as demais criaturas terrestres. E não se detendo na sua vontade de doação, não obstante o pecado do homem, Deus dá-se no Filho: «Amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigénito» (Jo 3, 16) Maria é a primeira testemunha desta verdade maravilhosa, que se actuará plenamente mediante «as obras e os ensinamentos» (cf. Act 1, 1) do seu Filho e, definitivamente, mediante a sua Cruz e Ressurreição.

A Igreja, que, embora entre «tentações e tribulações», não cessa de repetir com Maria as palavras do Magnificat, «escora-se» na força da verdade sobre Deus, proclamada então com tão extraordinária simplicidade; e, ao mesmo tempo, deseja iluminar com esta mesma verdade acerca de Deus os difíceis e por vezes intrincados caminhos da existência terrena dos homens. A caminhada da Igreja, portanto, já quase no final do Segundo Milénio cristão, implica um empenhamento renovado na própria missão. Segundo Aquele que disse de si: «(Deus) mandou-me a anunciar aos pobres a boa nova» (cf. Lc 4, 18), a Igreja tem procurado, de geração em geração, e procura ainda hoje cumprir esta mesma missão.

O seu amor preferencial pelos pobres acha-se admiravelmente inscrito no Magnificat de Maria. O Deus da Aliança, cantado pela Virgem de Nazaré, com exultação do seu espírito, é ao mesmo tempo aquele que «derruba os poderosos dos tronos e exalta os humildes... enche de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias ... dispersa os soberbos... e conserva a sua misericórdia para com aqueles que o temem».

Maria está profundamente impregnada do espírito dos «pobres de Javé» que, segundo a oração dos Salmos, esperavam de Deus a própria salvação, pondo nele toda a sua confiança (Sl 25; 31; 35; e 55). Ela, na verdade, proclama o advento do mistério da salvação, a vinda do «Messias dos pobres» (cf. Is 11, 4; 61, 1). Haurindo certeza do coração de Maria, da profundidade da sua fé, expressa nas palavras do Magnificat, a Igreja renova em si, sempre para melhor, essa própria certeza de que não se pode separar a verdade a respeito de Deus que salva, de Deus que é fonte de toda a dádiva, da manifestação do seu amor preferencial pelos pobres e pelos humildes, amor que, depois de cantado no Magnificat, se encontra expresso nas palavras e nas obras de Jesus.

A Igreja, portanto, está bem cônscia ― e na nossa época esta sua certeza reforça-se de modo particular ― não só de que não podem ser separados estes dois elementos da mensagem contida no Magnificat, mas também de que deve outrossim ser salvaguardada cuidadosamente a importância que têm os «pobres» e a «opção em favor dos pobres» na palavra de Deus vivo. Trata-se de temas e problemas organicamente conexos com o sentido cristão da liberdade e da libertação. Maria, «totalmente dependente de Deus e toda ela orientada para Ele, ao lado do seu Filho, é a ícone mais perfeita da liberdade e da libertação da humanidade e do cosmos. É para Maria que a Igreja, da qual ela é Mãe e modelo, deve olhar, a fim de compreender na sua integralidade o sentido da própria missão». [93]

  Documento completo> https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031987_redemptoris-mater.html

 

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